Resenha de Série de televisão
Tikhomiroff, M., dir. (2019).O escolhido.
Brasil: Mixer Filmes
A terra é plana. O aquecimento global é uma manipulação de segmentos de cientistas e ambientalistas. O papel da camada de ozônio foi ultradimensionado. Imagens da exploração espacial e da cosmologia são manipulações. A evolução das espécies foi formulada para afrontar e abalar crenças humanas. Vacinas são venenos que contêm substâncias perigosas e causam autismo. Vivemos tempos em que ciência e sociedade, a função social dos cientistas e o fazer acadêmico e o lugar das pesquisas nas percepções e na vida das pessoas têm ocupado cada vez mais espaço e impulsionado debates intensos.
Um tipo de debate que sempre alcançou e repercutiu no campo do audiovisual. Onde, por sinal, falar de ciência e suas fronteiras, tratar do desdobramento de sua produção para o cotidiano ou mesmo jogar luzes sobre seus agentes e campos de trabalho não são tendência recente. Filmes como Metropolis, as diferentes adaptações do romance de Frankenstein e tantas outras obras — a que se convencionou chamar de ficção científica e suas derivações — nascem praticamente juntas com o advento da linguagem do audiovisual. Desde então, ciência e seu universo, suas polêmicas e incertezas, seu viés filosófico e as nuances do progresso racional são assuntos constante nas produções. Inquietam e inspiram roteiristas e diretores.
Nos anos recentes, o tema chegou de maneira mais intensa aos documentários, às comédias de costumes e às séries oferecidas vias plataformas de streaming e por meio dos canais convencionais de televisão. O amplo alcance mundial da série The Big Bang Theory, que trata do encaixe no mundo de arquétipos de cientistas, talvez seja o dado mais ilustrativo dessa tendência. As associações entre ciência e sociedade estão na ordem do dia, movimentam discussões inflamadas. Podem render histórias com grande potencial de público. Abrem janelas para diferentes possibilidades de narrativas.
A série brasileira O escolhido, que estreou na plataforma Netflix, remete a essa tendência ao abordar em uma das suas dimensões um debate apaixonado: ciência e fé, com as tecnologias que a medicina oferece como pano de fundo. Na produção, três jovens médicos — um deles, chamado de cientista — são incumbidos de vacinar moradores de uma comunidade afastada e livrá-los de uma mutação do vírus Zika. Nesta jornada, terão de lidar com o sobrenatural, com uma espécie de xamã curandeiro pós-moderno fundador de uma seita que torna os fiéis imunes a doenças, além de seus próprios olhares e questionamentos sobre o exercício da medicina.
A população local rejeita a vacina, uma vez que as pessoas sequer ficam doentes e morrem apenas por causas naturais. Quando desejam. A população segue fervorosamente o guia, o “escolhido”. Ele tem o poder da cura e “trata” as pessoas com um curioso elixir, a “água azul”, que dá nome ao povoado ribeirinho localizado no Pantanal brasileiro. O tal elixir fica acondicionado em lâmpadas, que no imaginário social estão associadas a ideias, inventos, cientistas. E o jacaré pantaneiro, topo da cadeia alimentar e presença forte na tela, é descrito como um animal de cérebro pequeno, mas dotado de grande espírito. Situações que alimentam um pretenso entrelaçamento entre os signos e os valores da fé e da ciência.
Conflitos e atritos entre ciência biomédica e ambiente de fé permeiam o dispositivo da série, que é dividida em seis capítulos. Diferentes falas sublinham o antagonismo. Mas também sinalizam ou sugerem uma complementariedade. “A ignorância é a religião mais potente do planeta”; “A Medicina traz a morte”; “Vacina é remédio cego para doentes de Deus”; “Preciso de um milagre. E olha que sou ateu”; “Estamos aqui para impedir uma epidemia”; “Mostre a ciência, a natureza da sua fé”. “Me aceite, cientista. Eu sou a resposta”. “Não se pode examinar o espírito, avaliar a fé”. Os três médicos/cientistas lidam, por assim dizer, com situações limites em que seus conhecimentos e métodos são confrontados por um outro tipo de saber, o espiritual.
Quando o ambiente acadêmico e da ciência chega ao mundo da dramaturgia é razoável prever que imprecisões e exageros apareçam. Que contextos importantes do método do médico e do cientista sejam esquecidos. Não raro, determinados sensos comuns a respeito das ciências biomédicas e das ciências da saúde aparecem para criar uma espécie de gravidade e emergência da situação em que a trama se desenvolve. O tempo e os rituais da ciência e da medicina, em geral, não cabem inteiramente na dinâmica do roteiro e do arco dramático. Diferentes trabalhos acadêmicos têm apontado esses traços em produções audiovisuais. Ok, mas é lícito supor também que a licença dramatúrgica faz parte do jogo.
Em O escolhido, essas tendências estão aqui e ali ao longo da história. Termos e situações como “epidemia”, “quarentena”, “mutações” aparecem para acentuar o caráter de suspense, risco e emergência no qual a trama se desenrola. Noutra sequência, depois de enfim conseguirem vacinar as pessoas para a variação mutante do vírus Zika, médicos acompanhem quase simultaneamente após a aplicação do imunizante, uma espécie de estado epilético coletivo. As pessoas espumam e salivam em função da vacina. Até onde se sabe, efeitos colaterais vacinais, quando aparecem, podem se manifestar horas depois ou simplesmente serem muito individuais ou pouco severos.
Mais adiante, uma pessoa contrai Zika mutante instantaneamente depois de ser picada por um mosquito. Logo também aparecem chagas e feridas. Há evidências de que o tempo de contaminação e as primeiras manifestações da doença costumam ter um intervalo de tempo maior. Noutro ponto da história, a avaliação laboratorial da água azul sai quase em tempo real depois que uma amostra é colocada dentro de um maquinário “científico”.
A opção pelo vírus Zika parece seguir, assim, uma lógica temperada pela fabulação. Trata-se do micro-organismo da vez. Sintomas severos. Evolução rápida. Ferimentos pelo corpo. Portas para despertar temor e sentimento de risco. Foi assim com o ebola, com as gripes aviárias e suína, com as famigeradas bactérias devoradoras de carne humana. Parasitas e micróbios se prestam bem como vilões. Detalhe um: não há nenhuma vacina para o Zika em estágio avançado de desenvolvimento. Detalhe dois: na maioria dos casos, não há nenhum sintoma. Mas, vá lá, trata-se da tal licença dramatúrgica. Presente também na caracterização dos índios que vivem próximos, nas caveiras e demais símbolos de uma mitologia local, nos rituais folclóricos e na natureza idílica.
Passado, presente e futuro são distópicos em O escolhido. Os limites entre as práticas médicas e científicas e o saber popular e religioso não são tão elásticos. Quem faz o quê nesta trama entre campos ditos distintos fica como uma janela de entrada para discussão sobre o tema fé e ciência. E para desdobramentos no segmento da série.
A carregada atmosfera mística da produção, por outro lado, acaba jogando o embate entre fé e ciência para um plano subjacente. Suspense, trama policial e dramas pessoais e familiares ocupam o centro da ação — física e emocional — dos personagens. Claro, são elementos narrativos e de contextos. Mas, por assim dizer, deixam uma pretensa discussão sobre os caminhos da fé e as lógicas da ciência num plano quase superficial. Ou pouco desenvolvido. Aquém das diferentes camadas para reflexão que potencialmente uma série pode propiciar para a discussão pública. A série Black Mirror, impregnada de sociologia das redes sociais e do mundo virtual, também disponível via streaming, está aí para comprovar. Mas, como diz um velho bordão da indústria do audiovisual: that’s entertainment! É entretenimento, acima de tudo.
Autor
Wagner Oliveira. Jornalista, produtor audiovisual e editor executivo e membro do Conselho Curador do Selo Fiocruz Vídeo. Mestre em difusão da ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministra a disciplina “Ciência e meios de comunicação de massa” da Especialização em Divulgação e Popularização da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. E-mail: wagnerolivei@uol.com.br.