1 Introdução

Nos primeiros meses de 2020, o mundo assistiu ao aparecimento de uma crise sanitária, resultante de uma pandemia global, provocada pelo vírus SARS-Cov. Com o auge da pandemia de Covid-19, a sociedade global experimentou um crescimento exponencial da circulação de conteúdos desinformativos e de notícias falsas [Park et al., 2022] e que rapidamente ganhou espaço na agenda pública internacional. Sobre isso, a Organização Mundial de Saúde — OMS [2020] destacou em seus documentos públicos que a crise do Coronavírus gerou um cenário de infodemia em virtude da superabundância de informação on-line e off-line, matizada por intenções deliberadas de difundir informações equivocadas em matéria de saúde pública.

Na América Latina, observou-se uma afetação emocional generalizada, produto da desinformação, embora existam diferenças culturais e brechas regionais no que diz respeito à penetração da Internet junto à população [Rodríguez-Ávila et al., 2022]. Esta capacidade vertiginosa de gerar debate de caráter pseudocientífico e anti-científico teve como epicentro a arena das redes sociais, mostrando o importante poder de socialização desses espaços e de suas câmaras de eco e bolhas ideológicas [Lanusse & Negri, 2021], nas quais os usuários compartilham mensagens que geralmente confirmam suas visões de mundo. Em um estudo regional e comparativo sobre o papel das agências de fact checking, Ceron et al. [2021] confirmaram a responsabilidade do poder político na difusão de fake news no X (antigo Twitter), com base em um estudo de caso brasileiro. Também revelou o papel do ex-presidente Jair Bolsonaro como fonte principal de discursos negacionistas e da desinformação, durante a pandemia. Por sua vez, estudo comparativo realizado por Álvarez-Nobell et al. [2022] sobre as estratégias de comunicação política na Argentina e no Brasil, confirmou o peso do perfil ideológico dos governos dos dois países nos processos de tomada de decisão e gestão da crise. Nessa mesma linha, um trabalho de natureza qualitativo-discursiva com foco na Argentina [Nogueira da Silva et al., 2022] analisou o papel da plataforma CONFIar, criada especificamente pelo governo nacional para o combate de fake news e o controle da infodemia. A investigação concluiu que esta iniciativa oficial colaborou ativamente para a denúncia de numerosos tratamentos apócrifos e teorias da conspiração que permearam o debate público naquele país, mesmo sem se envolver na verificação de notícias com conteúdo político e partidário.

Em consonância com estes estudos, parte-se do pressuposto que a infodemia alcançou, durante a pandemia de Covid-19, o status de um problema social (social problem) [Gusfield, 1989], ao propagar-se de forma até mais rápida do que o coronavírus nas redes sociais e plataformas de mensageria [Moreno-Castro, 2022]. À medida em que a difusão de conteúdos falsos ou imprecisos sobre a pandemia aumentava, atores situados nos campos político, científico e comunicacional se engajaram fortemente na denúncia pública desse problema, destacando os efeitos negativos da circulação de desinformação científica na sociedade. Além disso, a infodemia pode ser entendida como um problema de abrangência transnacional, que alcança a agenda pública a partir da construção de consenso em diferentes contextos nacionais sobre a necessidade de se enfrentar essa situação [Calvo-Gutiérrez & Marín-Lladó, 2023; Castro-Paredes & Tomailla-Sandoval, 2024].

Este artigo analisa o processo de construção do problema da infodemia nas agendas pública e midiática argentina e brasileira. O foco são as práticas de identificação, responsabilização e reivindicação de soluções realizadas por um conjunto de atores classificados como claims-makers (“reclamantes” ou “empreendedores de causa”1) [Hassenteufel, 2010; Neveu, 2015]. Pretende-se revelar as estratégias empregadas por eles para aceder ao espaço público, de forma a denunciar e dar visibilidade à temática da infodemia nesses dois países. Além disso, busca-se analisar a forma como os discursos sobre o tema foram recebidos, adaptados, problematizados, ou mesmo subvertidos em função dos contextos nacionais argentino e brasileiro.

Para isso, adota-se uma abordagem sociológica qualitativa e comparativa, baseada em 17 entrevistas com jornalistas, médicos, cientistas, comunicadores e gestores públicos dos dois países, buscando reconstruir a percepção desses atores sobre a desinformação científica, suas práticas de denúncia e visibilização do problema e suas reivindicações por possíveis soluções no âmbito das políticas públicas. Este artigo busca oferecer, assim, três contribuições para os estudos sobre a desinformação na pandemia de Covid-19. Primeiro, questionar e superar o caráter normativo dos debates sobre o fenômeno, mostrando de que maneira o status que ele ocupa nas sociedades argentina e brasileira é resultado da ação de promoção dessa temática por claims-makers, preocupados com as consequências sociais das fake news e das fake science em momentos políticos muito particulares (e contrastantes) em ambos os países. Segundo, apresenta uma perspectiva teórica original para o estudo da desinformação científica, ao apropriar-se de conceitos da sociologia do jornalismo e da sociologia dos problemas sociais como estratégia para situar a emergência dessa temática nas agendas pública e midiática nacionais, com foco nas relações entre os jornalistas e suas fontes (cientistas, médicos, políticos, entre outros). Finalmente, oferece uma abordagem comparativa, baseada em dados empíricos gerados em dois países da América do Sul, visando, assim, mapear os efeitos do processo de circulação transnacional do problema da infodemia em espaços nacionais situados no chamado Sul Global.

2 A desinformação científica como um problema social

Na atualidade, a falta de confiança social emerge como um fenômeno global associado a uma profunda polarização social e política [Edelman, 2023; Corporación Latinobarómetro, 2024]. Com isso, o problema da desinformação passa a afetar, de forma crescente, diversas instituições democráticas. Em consonância com este clima de desconfiança e incerteza iniciado antes mesmo da pandemia, intensificam-se hoje ações de rechaço público em relação aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos históricos, como as vacinas e os medicamentos; em torno de evidências científicas sobre conjunturas complexas, como as mudanças climáticas; ou ainda sobre temáticas mais movediças, como os efeitos da inteligência artificial na sociedade. Tudo isso, revela os impactos sociais dos múltiplos formatos e variantes desinformativos.

Em um contexto mais amplo de “desordem informacional” [Del-Fresno-García, 2019; Wardle & Derakhshan, 2017], o termo desinformação tem sido frequentemente utilizado em referência à difusão deliberada de conteúdos que se sabe falsos. Esse tipo de situação não é nova, mas é a partir do trabalho de promoção e denúncia desse problema na agenda pública, que ela passa a integrar o debate público. Nesse processo, dois outros termos têm sido frequentemente associados ao problema da desinformação: fake news e infodemia. O primeiro é geralmente utilizado por jornalistas para se contraporem às “verdadeiras notícias”, produzidas pelo jornalismo profissional. Assim, uma “fake news é co-construída pelas audiências, a avaliação da falsidade depende muito do fato de o público perceber a falsificação como verdadeira”2 [Tandoc Jr. et al., 2018, p. 148]. Já infodemia aparece sobretudo no vocabulário dos organismos internacionais (OMS, Unesco) associada aos impactos sociais e sanitários da desinformação. Por isso, esses três termos são mobilizados neste artigo como parte de um mesmo universo semântico, visando a promoção de um problema (a desinformação científica) na agenda pública.

De acordo com a abordagem construtivista, os problemas “são fundamentalmente produtos de um processo de definição coletiva”3 [Blumer, 1971, p. 298], no qual contexto histórico e cultural interagem com as interpretações culturais da experiência social [Gusfield, 1989]. Por isso, são resultado da ação de claims-makers, responsáveis por dar visibilidade social a um fenômeno e a persuadir a opinião pública e o poder público das consequências problemáticas de uma situação e da necessidade de se agir para resolvê-lo. Uma parte considerável das estratégias de denúncia de um problema como a infodemia depende da capacidade desses claims-makers de ocuparem o espaço público por meio de intervenções na mídia [Best, 2010] e nas plataformas digitais [Zunino, 2022; López-López et al., 2020; Goulart & Kafure Muñoz, 2022]. O estudo dos problemas sociais passa, portanto, pela compreensão das práticas desses atores de promoção (ou denúncia) de uma temática [Hassenteufel, 2010; Manosalvas & Rave Restrepo, 2022]. Isso envolve a utilização de estratégias de adaptação de um conteúdo acadêmico ou técnico para ser consumido por um público não-especializado no tema [Oliveira dos Santos & Barbosa Müller, 2022; Dyba et al., 2024]. Também envolve um processo de negociação de diferentes claim-makers com os jornalistas e outros atores do campo midiático, visando a transformação de uma situação considerada problemática em um acontecimento jornalístico, acessível às audiências [Best, 2010].

Com base nesta perspectiva, é possível associar a visibilidade do problema social da desinformação científica ao trabalho de médicos, decisores, políticos, gestores públicos, comunicadores da ciência, entidades e associações, e organizações internacionais envolvidos em sua denúncia pública. Durante a Covid-19, esta constelação de claims-makers participaram do debate sobre a desinformação, atuando como fontes de informação jornalística, mas também postando conteúdos em redes sociais ou desenvolvendo outras ações de comunicação pública nos campos da ciência e da saúde. Nesse contexto, os jornalistas desempenham um duplo papel: o de gatekeerpers da agenda midiática, responsáveis por decidir que atores e temática poderiam ter acesso ao espaço jornalístico, e o de parte interessada em denunciar os efeitos negativos da desinformação na sociedade — como forma de legitimar o papel da mídia e do jornalismo como instâncias de produção de uma informação credível e verdadeira.

2.1 O coronavírus na agenda pública argentina e brasileira

Um problema público se inscreve em uma trajetória temporal [Becker, 1973; Blumer, 1971] que delimita, ao mesmo tempo, as etapas de sua construção e os recursos que devem ser mobilizados pelos claims-makers em sua denúncia [Neveu, 2015]. É fruto de uma trama de percepções intersubjetivas, que intervém em diversas representações e racionalidades [Rosas Medina, 2019], complexificando o processamento e a interpretação coletiva de dados e evidências públicas disponíveis a vários atores sociais. A forma como esses atores devem agir para sensibilizar a opinião pública e os governos sobre a importância e a gravidade de uma situação potencialmente problemática é indissociável da forma como ela é socialmente percebida, dos processos de rotulação de um problema, de atribuição de um conjunto de causas e responsabilidades [Becker, 1973]. Assim, Hassenteufel [2010] divide a construção de um problema em três momentos: sua identificação no conjunto de situações adversas ou incômodas (naming), a atribuição de responsabilidades (blaming) e a busca por soluções, incluindo políticas públicas (claiming). A eficácia desse processo depende da capacidade de os claims-makers apresentarem uma situação adversa como algo que ultrapassa o escopo de seus interesses pessoais ou corporativos de modo a ser percebida como um problema, de fato, com efeitos negativos para toda a coletividade [Neveu, 2015].

Nesse sentido, a resposta à pandemia de COVID-19 dada pelas autoridades argentina e brasileira foi influenciada por seus contextos econômicos e políticos. Na Argentina, o governo de Alberto Fernández adotou, ainda no início da crise sanitária, medidas de isolamento social rigorosas, buscando proteger um sistema de saúde já sobrecarregado e uma economia vulnerável. No entanto, tais medidas desencadearam um intenso debate político, com a oposição criticando o impacto econômico dessa isolamento e a eficácia das restrições [Tarullo & Gamir-Ríos, 2022]. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro minimizou a gravidade da pandemia, priorizando a economia em detrimento à saúde pública e promovendo tratamentos médicos sem eficácia comprovada [Waisbord, 2022]. Esta postura gerou profunda polarização política e uma resposta descoordenada em relação à pandemia, com consequências devastadoras para o sistema de saúde e a população. Ambos os países usaram diferentes estratégias de comunicação oficial, o que também foi foco de debate na mídia [Álvarez-Nobell et al., 2022]. Como apontado anteriormente, enquanto no Brasil o negacionismo e a desinformação faziam parte do discurso do governo federal, na Argentina, o combate às notícias falsas foi uma das políticas de gestão pública da crise [cf. Pereira & Paz García, 2024].

Tendo em vista esse quadro teórico e contextual, este artigo buscou analisar e comparar as estratégias dos claims-makers argentinos e brasileiros na inserção na agenda pública do problema da desinformação científica durante a pandemia de Covid-19. A seguinte pergunta de pesquisa orienta a análise empírica: Quais foram as estratégias de identificação (naming), atribuição de responsabilidades (blaming) e busca por soluções (claiming) adotadas pot claims-makers argentinos e brasileiros na construção do problema da desinformação científica durante a pandemia de Covid-19?

3 Metodologia

O campo de pesquisa foi composto por 17 entrevistas semiestruturadas e em profundidade com um conjunto de claims-makers que participaram — como jornalistas e fontes de informação — das discussões sobre a infodemia durante a cobertura da Covid-19. Os entrevistados foram identificados por meio de um estudo precedente sobre a referida cobertura, cuja análise de conteúdo permitiu distinguir as fontes de informação e os jornalistas que participaram ativamente deste debate na mídia generalista e especializada argentina e brasileira nos anos de 2020 e 2021 [Pereira & Paz García, 2024]. A utilização desta técnica de amostragem levou à construção de grupos distintas de respondentes, com maior incidência de jornalistas na Argentina e de pesquisadores/infectologistas no Brasil. Estas diferenças são reveladoras de como o tema da infodemia foi pautado nas agendas públicas dos dois países no que diz respeito ao papel e o peso assumido por atores oriundos dos polos midiático e médico-acadêmico no debate (Tabela 1). A amostra mostrou-se heterogênea em termos de quantidade e perfil de entrevistados: 5 médicos (a maioria, especializados em infectologia), 5 acadêmico (professores e cientistas), 6 jornalistas (incluindo 3 editores de veículos especializados), 3 especialistas em ciência, e uma gestora pública, totalizando 3 mulheres e 5 homens na Argentina, 6 mulheres e 4 homens no Brasil. Apesar disso, o conjunto de claim-makers analisados desempenharam funções similares no debate, permitindo uma comparação sobre as modalidades públicas de promoção e denúncia da infodemia na mídia.

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Tabela 1: Entrevistados/as por país. Fonte: elaboração própria.

As conversas foram conduzidas em formato virtual em 2022. Utilizou-se um roteiro comum, adaptado em função do status do entrevistado e do seu contexto de origem. Foram abordadas quatro temáticas: a avaliação do problema da desinformação na ciência; a compreensão das relações entre jornalistas e fontes durante a cobertura da pandemia; as práticas de sensibilização da opinião pública sobre o problema da infodemia utilizadas por esses claims-makers; e as recomendações em termos de políticas públicas para combatê-la.

As entrevistas foram transcritas e anonimizadas para preservar a confidencialidade dos entrevistados. Para a sistematização e análise do corpus, utilizou-se o software Atlas.ti, que facilitou o tratamento e a integração de um grande volume de informações qualitativas geradas pelas entrevistas. O processo final de codificação seguiu uma modalidade aberta, indutiva. Por isso, priorizou-se categorias emergentes em torno dos objetivos da análise e mediante a aplicação do método comparativo [Bonilla-García & López-Suárez, 2016], com base nas premissas centrais da teoria fundada dos dados (Grounded Theory) [Glaser & Strauss, 1967 citado por Soneira, 2006]. Esta metodologia permitiu identificar tanto as regularidades como as excepcionalidades discursivas na busca intertextual de um ponto reconhecível de “saturação teórica” entre unidades de significados.

Em relação à dimensão de contraste contextual abordada a partir da análise comparativa, adotou-se o método da similitude [Hirschl, 2005] e de comparação de países análogos por “variáveis” [Vigour, 2005] ou parâmetros que foram identificados como relevantes a partir da interpretação dos dados. Nesse desenho, observou-se como um mesmo evento (o problema da infodemia) foi discutido no interior de contextos midiáticos similares e entre grupos de atores com status e funções análogas no âmbito dos ecossistemas informacionais dos dois países analisados.

4 Resultados

4.1 Naming: o fenômeno da desinformação e suas categorias mais relevantes

No corpus, a categoria “desinformação” emerge como código mais densamente enraizado na identificação do problema social da infodemia, com 6.370 palavras (tokens ou casos, expressões ou verbalizações) entre o argentinos, e 8.210 palavras entre os brasileiros — lembrando que foram feitas dez entrevistas no Brasil, três a mais do que na Argentina. O corpus inclui adjetivos, substantivos, nomes próprios e verbos no infinitivo — estruturas específicas, selecionadas para a identificação dos sentidos discursivos. Foram excluídos da análise: advérbios, conjunções, pronomes, conectores e outras expressões não-significativas. Assim, esta categoria inclui referências a iniciativas de combate à desinformação, atribuições de responsabilidade e menções dos entrevistados a fenômenos da infodemia, pós-verdade e fake news, bem como etiquetas de conteúdo mais acadêmico ou especializado, vinculadas às práticas do jornalismo científico.

No corpus, o termo fake news emergiu como categoria mais densamente enraizada, com 42 citações associadas e uma distribuição similar entre os dois países: 2.501 palavras no subcorpus argentino e 2802 no brasileiro, 39,26% e 34,12% respectivamente do total de palavras de cada país relacionadas à essa categoria. É possível considerar que a proporção ligeiramente maior de palavras no caso argentino — indicando maior presença proporcional do termo, apesar do número menor de palavras e entrevistas — poderia estar associada à profissionalização mais antiga do jornalismo científico nesse país. Considerando esse dado, e com o objetivo de comparar os sentidos atribuídos ao conceito em cada grupo nacional de claim-makers, aplicou-se um estudo de frequência de palavras relacionadas à categoria fake news. Foram recuperadas as palavras de cada idioma com mais de 100 menções no caso do Brasil (cujo corpus tinha um volume maior, baseado em 10 entrevistas) e com mais de 70, na Argentina. Com base nisso, elaborou-se a tabela a seguir (Tabela 2) em que se comparam as primeiras 10 palavras com maior número de menções.

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Tabela 2: Listas de palavras com maior frequência associadas ao termo fake news. Fonte: elaboração própria.

A análise comparativa revelou, portanto, o papel do anglicismo “fake news” como conceito articulador do fenômeno nos dois países. Trata-se de um rótulo político-midiático, que permite que os entrevistados denunciem na agenda pública os fenômenos da infodemia e da desinformação associadas à Covid-19. De fato, a categoria é predominante no discurso dos jornalistas científicos (com 14 menções) o que, na amostra de respondentes, somaram um total de 5 entrevistados (3 argentinos e 2 brasileiros). Em segundo lugar, acadêmicos e médicos, grupo que totaliza cinco entrevistados, registrou 11 e 10 menções respectivamente. O menor uso do termo foi feito por uma jornalista generalista (5 menções) e uma funcionária pública (3 menções).

Apesar das críticas em relação ao uso do termo “fake news”, como um contrassenso ou um oxímoro, que afeta a confiança e a legitimidade da profissional no jornalismo [Träsel et al., 2019; Mazzone Vivas, 2018; Tandoc Jr. et al., 2018], o termo é frequentemente utilizado pelos jornalistas científicos para nomear as ameaças à informação e ao conhecimento científico provocada pela circulação de conteúdos não verificados. No campo da comunicação científica e no campo específico da infodemia, o termo faz referência a um fenômeno estrategicamente identificado por profissionais especializados. Nas palavras listadas na Tabela 2, observa-se o papel desempenhado por outros atores associados ao problema da desinformação: os meios de comunicação e as redes sociais, mas também a ciência. Nesse sentido, os dados sugerem uma certa responsabilização desses sujeitos na replicação das informações associadas à infodemia.

De fato, os entrevistados brasileiros, reconhecem que práticas de desinformação já existiam antes das redes sociais, mas seus efeitos negativos para a sociedade aumentam na pandemia:

“A desinformação é um problema público porque, se você não tem a informação correta… Imagine: a gente citou aqui o exemplo da vacina. Se a gente não tivesse conseguido vacinar a quantidade de pessoas, ou seja, conseguisse vacinar os percentuais que foram atingidos aqui, no Brasil, de vacinação, será que nós conseguiríamos construir um pacto coletivo de saúde, de proteção à vida?” [BR5].

Nessa mesma linha de ênfase nos efeitos exponenciais da desinformação viralizada, identificou-se, dentre os entrevistados argentinos a percepção de que os serviços de mensageria seriam “caixas de ressonância” [AR6] para a distribuição desse tipo de conteúdo. Trata-se de uma concepção compartilhada sobre os efeitos da desinformação nas plataformas e nas redes sociais, cujos esforços para combater o problema encontrariam limitações no atual contexto de pós-verdade. Assim, “ya había gente que había decidido creer” [AR1] em desinformações intencionadas que “se cimentan con mucho tiempo, con insistencia, con reiteración, con cuestiones coyunturales y estructurales como la concentración de medios” [AR6].

Em relação à forma como certas ondas de desinformação afetam setores sociais específicos com responsabilidade política, moral ou ética, os entrevistados também destacaram os impactos desse fenômeno sobre a autoridade da ciência [Oliveira, 2020], desgastada pela necessidade de trazer informações de qualidade e evidências sustentáveis face aos inúmeros conteúdos de pós-verdade:

“[ …] estamos en un siglo 21, pidiéndole a la ciencia que nos vuelva a confirmar que la tierra es redonda, que hay que tomar agua, que el agua es más importante que el petróleo, le pedimos que nos confirme tantas cosas ante el descreimiento [ …] A la ciencia se le hace perder tiempo, porque la ciencia funciona con saber acumulativo sobre todo las ciencias naturales y exactas” [AR6].

Os entrevistados dos dois países associam esse problema social aos cenários de pós-verdade ou de desordem informacional que habilitam a criação de iniciativas de desinformação massiva, bem como os esforços direcionados ou sistemáticos para atacar grupos sociais específicos.

Finalmente, os entrevistados brasileiros preferem distinguir a situação de infodemia da simples circulação de conteúdos de desinformação. Para eles, a infodemia não deve ser vista como a difusão equivocada de conteúdos falsos. Ela seria o resultado de uma intencionalidade política e que alcança um impacto sem precedentes, tendo em vista a sua visualização no ambiente digital. “Por causa justamente da comunicação muito rápida, [estes conteúdos] se tornaram mais importantes [no contexto das práticas informacionais da população] e, ao mesmo tempo, mais difíceis de serem esclarecidas” [BR7], disseminando-se como “uma tempestade de informações (informações verdadeiras e informações falsas) em um volume nunca visto” [BR4].

4.2 Blaming: os responsáveis da infodemia

Em ordem de menção, os setores mais culpabilizados pela infodemia no caso brasileiro foram os “políticos”: 13 citações entre os entrevistados (Tabela 3). Eles aparecem, portanto, como atores de maior visibilidade pública nos processos de comunicação da pandemia. Os meios de comunicação (7 citações na Argentina, 3 no Brasil) e as redes sociais ou plataformas (5, na Argentina, 7 no Brasil) na opinião dos claims-makers, também participaram do agravamento do problema da infodemia, devido à sua associação ou relação de cumplicidade com o poder político — este, sim, um ator fundamental nesse processo.

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Tabela 3: Responsáveis da infodemia na Argentina e no Brasil, identificando-se a presença e a ausência de intencionalidade política. Fonte: elaboração própria.

Assim, em cada contexto nacional predominam alianças com peso e intencionalidade distintas entre esses setores. Enquanto na Argentina, a mídia e as redes sociais foram a dupla de difusores de desinformação mais influentes em termos de intencionalidade política, no Brasil, o governo federal foi o principal ator responsabilizado (com intencionalidade) pelas práticas relacionadas à infodemia, utilizando-se, para isso, das redes e plataforma digitais. “No Brasil, a desinformação partia do Presidente da República e do palácio presidencial” [BR6]. Em contraste, os setores médico, acadêmico e as audiências foram os menos assinalados pelos entrevistados, encontrando-se eventualmente como vítimas da desinformação, sem intencionalidade política.

Assim, para alguns entrevistados, a mídia hegemônica seria cúmplice da viralização de conteúdos falsos: “uma mentira dita mil vezes acaba soando como verdade. A gente infelizmente tem também as mídias que são dedicadas a isso” [BR4]; “hubo gente que, por figurar, otros por irresponsabilidad y otros con fines, algunos maliciosos, pero también económicos, personajes famosos, rating…” [AR7]. Os claims-makers destacaram ainda o avanço do negacionismo e de discursos de caráter conservador nos meios de comunicação: “neste contexto, é óbvio que nós temos um crescimento avassalador disso que se chama de extrema direita, que opera com discursos muito refinados que vão ao cerne de quê? De que você não precisa de nenhum requisito para ser portador de verdades” [BR1].

A responsabilização do setor midiático é indissociável das metas e estratégias de influência política dos seus proprietários. De certa forma, é o poder fático do Estado que leva a essa situação, dada sua falta de interesse em regular os abusos dos meios de comunicação. Na Argentina, destaca-se um acontecimento que teve como protagonista uma apresentadora de telejornal de um dos canais de maior audiência e penetração no país. Durante a emissão habitual do seu programa, e com uma postura marcadamente contrária às medidas de restrição sanitária implementadas pelo governo, a jornalista bebeu uma garrafa de um líquido apresentado como sendo hidroxicloroquina, manifestando a ideia do que Estado não teria interesse em revelar que tal medicamento poderia ser usado como um tratamento efetivo contra a doença. Este episódio impulsionou múltiplas denúncias contra o canal e envolveu uma intervenção da Defensoría del Público4 e o uma condenação da parte da própria comunidade de jornalistas:

“es poco creíble que el episodio de Viviana Canosa, dando a entender que estaba tomando hidroxicloroquina, ella sabía perfectamente a esa altura, que no se estaba recomendando esa sustancia para prevenir el contagio o para tratar a la persona que estuviera contagiada [ …] eso ya no es falta de adecuada formación, en el sentido que ella no es una periodista científica, sino deliberado interés por desinformar y confundir a las audiencias, en función de objetivos político-partidarios que corresponden a una batalla más amplia” [AR3].

“vos tomás dióxido de cloro en televisión, y a la semana se muere un nene porque los padres le dieron dióxido de cloro. ¿De quién es la culpa? ¿Cómo probar que es de la persona que tomó, si todo el mundo está hablando del dióxido de cloro en las redes sociales y en la televisión?” [AR2].

No caso brasileiro, os entrevistados utilizaram termos mais genéricos (mídia, mídia tradicional, meios oficiais, imprensa) no processo de atribuição de responsabilidade, sem mencionar explicitamente o nome de empresas jornalísticas ou de jornalistas. Nesses casos, a adoção de práticas desinformativas foi vista como resultado da busca por audiência e impacto, sem que houvesse precauções em relação à qualidade das informações veiculadas:

“Você tem também uma mídia que se dedica ao mundo da fantasia de forma proposital, [ …] demoníaca, para lidar com tudo isso, que acaba também tendo uma repercussão muito grande [ …] uma mentira dita mil vezes acaba soando como verdade” [BR4].

“A forma como a mídia tradicional trata a desinformação aumenta o engajamento da desinformação… dão mais publicidade para a informação falsa [ …] Eu acho que o exemplo clássico foi quando o Bolsonaro disse que a vacina causava HIV. Gente, isso é tão estapafúrdio!” [BR6].

Resumindo, em ambos os países, a mídia foi percebida com um ator alinhado a uma parte do setor político, sem apresentar uma intencionalidade direta de desinformar. Os meios se utilizaram politicamente desse cenário, tendo em vista a falta de compromisso de alguns deles em relação à qualidade da informação: como um conteúdo vendável, a desinformação entraria na mesma maquinaria de produção cotidiana de notícias, mesmo que gere confusão e engano entre as audiências.

Um elemento distingue, entretanto, o processo de blaming brasileiro do argentino. Enquanto na Argentina, a mídia é tomada em bloco, no Brasil, o setor aparece dividido entre aqueles que apoiam a postura negacionista do governo federal e os que buscaram, de alguma forma, combatê-la. Assim, o setor midiático se vincula com/reflete o processo de polarização política, contaminando os debates sobre a infodemia. Nesse cenário, os claims-makers são perfeitamente capazes de distinguir os atos de difusão desinteressada ou ingênua de conteúdos falsos, daqueles produzidos intencionalmente por estruturas profissionais de produção e disseminação desses conteúdos, sobretudo por agentes ligados à extrema direita política: “Eu acho que, independente de partido X, Y ou Z e do governante, tem uma questão ideológica aí, que dividiu a população, como em um grande jogo de futebol (um Fla-Flu). De repente, interessava muito mais estar do lado do bando do que estar bem-informado cientificamente” [BR3].

Os médicos foram outro grupo apontado como responsável pela desinformação científica — embora não tenha havido um consenso em relação à sua intencionalidade. De fato, a busca por fontes jornalísticas no contexto incerto da crise pandêmica abriu condições para que personalidades ligados ao campo médico-científico participassem do debate público, muitas vezes mediante difusão de teorias conspiratórias, de discursos antivacina ou na defesa de remédios milagrosos e tratamentos sem eficácia comprovada [AR3, AR4, AR5, AR6; BR7; BR4]. “Você tem médicos também que fazem parte corrente de inverdades, de notícias falsas” [BR7]. No caso brasileiro foi bem ilustrativa a posição do Conselho Federal de Medicina que, em abril de 2020, publicou um parecer defendendo a autonomia médica para prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 [CFM, 2020]. “Nós temos um Conselho Federal de Medicina que é absolutamente favorável a este grupo [político, ligado ao presidente Bolsonaro], inclusive, que ainda [em 2022] se mantém a favor de medicações comprovadamente não eficazes e tudo” [BR4]. Além disso, a difusão de desinformação pelos médicos também acontecia nas redes sociais, por meio da divulgação de conteúdos falsos ou descontextualizados — por exemplo, os grupos WhatsApp dedicados à divulgação de conteúdos antivacina no Brasil.

As redes sociais foram mencionadas como responsáveis com alta intencionalidade política (Tabela 2): “A gente vê que tanto o YouTube, quanto o Facebook, quanto o Twitter, todos eles, o Spotify, que a gente viu agora mais recente, têm tido uma postura e um papel de responsabilidade social muito questionável, sabe?” [BR2]. A análise revela que a plataforma digital mais culpabilizada pela dispersão de notícias falsas foi o WhatsApp, seguida de X (Twitter) na Argentina e do Telegram no Brasil. O Facebook também aparece, mas com menor intensidade. Os claims-makers destacaram a falta de interesse das redes sociais de mediar os seus conteúdos ou zelar pela qualidade da informação publicada e valorizada pelos seus algoritmos, reconhecendo a existência de uma lógica de intencionalidade na difusão de fake news por questões de estratégia comercial ou política.

Todavia, alguns claims-makers, sobretudo argentinos, preferiram eximir os aplicativos de mensageria como o WhatsApp da responsabilidade pelos conteúdos falsos — dada a ausência de um feed gerido por um algoritmo. Nesses casos, a responsabilidade foi delegada às audiências e à cultura de consumo de informações não-verificadas [González Reyes, 2021] em contraste com o uso reflexivo e crítico de informações, fundamental em um cenário infodêmico. Esse tipo de discurso teve consequências importantes na construção do problema social naquele país, na medida em que atenuou a responsabilidade das redes sociais, deslegitimando os esforços de regulação ou de sanção política da parte do poder público. Ao mesmo tempo, fundamentou-se em uma visão estereotipada das audiências, vistas como vulneráveis e incapazes de crítica, engajadas na busca de dados que reforcem seus vieses de confirmação, sem realizarem nenhum tipo de procedimento de checagem. Esses argumentos subsidiarão a defesa das iniciativas de literacia midiática e científica como solução possível para o problema da infodemia, conforme se verá a seguir.

4.3 Claiming: os limites da regulação estatal

No corpus brasileiro, tanto as iniciativas de alfabetização midiática das audiências [BR9], o que lhes permitiria adquirir as competências necessárias para navegar no cenário de desordem informacional, como a realização de intervenções junto aos donos das plataformas de forma a incentivá-las a mediar ou regular os conteúdos difundidos nas redes sociais [BR10; BR5], foram consideradas ferramentas significativas na luta contra a infodemia. Em contraste, os entrevistados argentinos, reconheceram os esforços de regulação das plataformas, mas enxergam a situação a partir de uma cultura política que frequentemente dificulta a implementação de marcos normativos. Embora a Argentina costume aderir aos pactos internacionais em defesa da informação e da democracia, essas declarações não têm incidência nos conteúdos midiáticos ou nas práticas de publicação nas redes sociais. São intenções éticas e deontológicas, que não alcançam o nível de consenso ou de adoção efetiva — o que explica o ceticismo dos argentinos em relação à regulação estatal.5

No Brasil, observa-se uma discussão mais avançada a respeito de marcos regulatórios voltados ao enfrentamento da desordem informacional. Desde 2020, está em discussão no parlamento, o projeto de lei nº 2.630, chamado de PL das Fake News.6 Essa iniciativa enfrenta forte resistência da parte das plataformas (Google, Meta, X). Além disso, alguns entrevistados se dividem em relação à sua eficácia para resolver a desinformação:

“Uma lei da fake news vai resolver? Não sei. Ela vai vir acompanhada de políticas públicas? Ela vai vir acompanhada de educação? Se eu não educar a população, se eu não tiver políticas públicas educacionais, ela não vai resolver; ela vai virar uma lei morta, que é uma lei que não saiu do papel” [BR3].

“Eu não sei se esse projeto de lei vai resolver [ …] a gente precisaria ter um diálogo, de fato, com as empresas, com todas as frentes do governo. O governo precisaria comprar essa briga — o poder público — e convocar todas as partes [ …] Uma lei sozinha não vai resolver…” [BR8].

Os claims-makers dos dois países destacaram a dimensão educacional, representada pelas ações de comunicação e de literacia midiática e científica como ações — ou mesmo políticas públicas — preventivas, que poderiam ajudar no longo prazo, a enfrentar o problema da desinformação científica. O foco dessas ações são as audiências, corresponsáveis, mesmo sem intencionalidade, pelo consumo e difusão de conteúdos falsos e que precisariam entender melhor o funcionamento da ciência e do novo ecossistema informacional:

“E você imagina, eu lido com muitos grupos e conseguir mostrar para as pessoas que antes de compartilhar alguma informação, cheque essa informação [ …]. O efeito desse tipo de notícia em países com o nível educacional maior é muito menor, porque as pessoas têm o letramento científico que permite o discernimento de uma fake news e de uma notícia de um fato, sabem onde checar esse fato antes de encaminhar [ …] é preciso criar uma cultura de letramento científico na população” [BR2].

Outro aspecto que emerge nas entrevistas é o papel da comunicação pública da ciência no combate à desinformação. Há uma diferença entre os dois países em relação ao tipo de expertise que deveria ser mobilizada no acesso à agenda pública. No caso argentino, o setor com maior exposição e que foi privilegiado no combate às incertezas da crise sanitária foram os médicos. No caso brasileiro, a conjuntura privilegiou a ação dos cientistas. A oposição entre médicos e cientistas revela uma disputa no interior do campo da saúde face ao conceito de incerteza, à exigência social da informação para combater a infodemia e o papel do jornalismo como mediador da agenda pública, responsável por dar espaço aos diferentes setores envolvidos no debate. Assim, observa-se uma “cierta tensión entre quienes investigan en salud y quienes ejercen la medicina [ …] el médico está en contacto directo con el paciente y se arriesga, arriesga su matrícula, su fuente de trabajo [ …] las ciencias de la salud, si hay algo que no son es exactas” [AR2].

As relações entre as diferentes ações de combate ao problema da infodemia e o grau de expertise necessário à sua realização pode ser representada por meio do diagrama de Sankey (Figura 1), que revela os fluxos entre as diferentes subcategorias e sua densidade discursiva. Também mostra as relações destas subcategorias com outras categorias com as quais se observou co-ocorrências durante a análise do corpus.

PIC

Figura 1: Diagrama de Sankey entre as subcategorias relacionadas ao “perfil profissional” e as categorias “comunicação pública a ciência”, “iniciativas de combate à desinformação” e “limites da regulação estatal. Fonte: elaboração própria.

O diagrama evidencia um fluxo intenso de convergência entre a categoria “expertise” e a capacidade de desempenho da “comunicação pública da ciência” (coeficiente 0.12), acompanhada da habilidade de manejar a incerteza (0.05) e das dinâmicas de autoproteção e autorreferência profissional (0.02) como categorias interconectada embora em menor medida. Nesse caso, os entrevistados brasileiros destacaram como habilidade fundamental poder ganhar o “tempo para separar os dados, ajudar o meio bem como outros jornalistas” [BR7], convencendo os comunicadores da ciência da importância de uma boa comunicação como estratégia de promoção da saúde. Também advogaram pela difusão de informações “com base em evidências científicas” como “uma possibilidade, uma probabilidade de que a pessoa se sinta mais segura, mais amparada” [BR5]. Além disso, destacaram a experiência e o media training como algo “fundamental para os profissionais que trabalham na área de vigilância e saúde e de cargos de liderança [ …] a gente precisa de treinamento de Ciência, de saúde pública para jornalistas e para comunicadores de maneira geral” [BR2].

5 Discussões e conclusões

Este artigo apresenta os resultados de um estudo comparativo sobre a construção do problema da infomedia na Argentina e no Brasil. Por meio análise de um conjunto de entrevistas com claims-makers, buscou-se entender as estratégias de identificação, atribuição de responsabilidade e busca por soluções dessa temáticas nas agendas públicas desses dois países.

De modo geral, os entrevistados situaram o fenômeno de desinformação durante a pandemia em um contexto mais amplo de pós-verdade e de crise epistêmica de dois setores dedicados à produção de um discurso “verdadeiro” sobre o mundo social: o jornalismo e a ciência. Nesse sentido, associaram esse problema social à emergência de um novo ecossistema político e midiático, marcado pela politização do debate científico e pela submissão da produção jornalística às lógicas do comercialismo e da hiperconcorrência. Também destacaram as novas modalidades de circulação e consumo da informação, bem como o uso intencional e não-intencional das redes sociais para a difusão de conteúdos de desinformação — incluindo a científica.

Esta leitura do fenômeno emerge ainda nos discursos de atribuição da responsabilidade pela infodemia. Os claims-makers demonstraram uma leitura profundamente política desse problema social. Assim, são as relações políticas que orientam o posicionamento midiático sobre a desinformação científica. A política também explica o comportamento das audiências: incapazes de questionarem seus próprios vieses políticos, os consumidores de informação muitas vezes contribuem ativamente com a circulação de conteúdos falsos, agravando o problema. No caso brasileiro, essa dimensão política é ainda mais evidente. Em um contexto de forte polarização no qual o governo federal assumiu uma posição marcadamente negacionista, a discussão sobre a autoridade da ciência ganhou ares de disputa ideológica. Ou seja, a defesa da vacina ou da hidroxicloroquina podiam ser considerados conteúdos de desinformação, de acordo com o posicionamento político do interlocutor.

Os entrevistados reconheceram a infodemia como um fenômeno complexo. Essa percepção permite atualizar a temática da desinformação científica como um problema contemporâneo (quando, na verdade, não o é), de forma a inseri-lo mais facilmente na agenda midiática e solicitar algum tipo de resposta da parte do poder político. Isso explica a dificuldade de os claims-makers de proporem soluções originais para o problema social, recorrendo, sempre que possível, à atualização de antigos discursos: o investimento em educação midiática e literacia científica, o papel da verificação dos fatos, a adoção de preceitos éticos na comunicação pública da ciência e a necessidade de uma autorregulação profissional mais efetiva. É possível dizer, portanto, que o problema social da infodemia é apresentado como algo recente, mas as soluções evocadas reproduzem concepções de ciência e do jornalismo do século XX.

Por outro lado, o debate mais atual sobre a regulação das plataformas digitais não é ponto passivo na opinião dos claims-makers. Não houve consenso entre eles sobre o papel das redes sociais na difusão de conteúdos de desinformação — embora todos concordem que um número elevado de fake news circulavam no interior das redes sociais. Os claims-makers também desconfiaram da capacidade do estado de regular e aplicar sanções às empresas do GAFAM. Nesse sentido, é importante situar e nuançar a fala dos brasileiros: como as entrevistas foram feitas em 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, era natural que houvesse um certo receio desses entrevistados em relação ao real interesse do poder público em resolver esse problema.

A análise comparativa sugere a capacidade de os claims-makers internacionais (a OMS, a comunidade científica) de operarem a transferência de discursos sobre a infodemia, colaborando para transformá-la em um problema social de fato transnacional. Argentinos e brasileiros enfrentaram uma situação comum, que emerge nos dois países no mesmo momento. Os próprios meios de comunicação atuaram como um espaço importante de transnacionalização desse debate, ao alertarem sobre os efeitos sociais da infodemia no mundo. Como países vizinhos, Argentina e Brasil se interessavam pelo noticiário um do outro e os claims-makers se utilizavam de eventos e casos anedóticos (como a postura negacionista de Jair Bolsonaro) para denunciar os efeitos negativos da circulação de conteúdos de desinformação durante a pandemia. Ao mesmo tempo, essa relativa similaridade no processo de construção do problema da infodemia esconde formas locais de apropriação dessa temática nos dois países. De fato, a cobertura (e a denúncia) desse problema social é reveladora das diferenças entre os sistemas político, midiático e científico argentino e brasileiro. Essas variações se refletem na confiança da população em relação à forma como a mídia tratou o tema, bem como falta de credibilidade dos respectivos Estados para encontrar soluções do ponto de vista regulatório para a infodemia.

Enfim, este olhar revela os principais nós discursivos de promoção da temática da infodemia na agenda pública Sua principal contribuição consiste em desnaturalizar o problema da desinformação científica, mostrando o trabalho feito por atores interessados em denunciar seus responsáveis, bem como seus efeitos (negativos) sobre a sociedade. A análise dos relatos produzidos por um conjunto de claims-makers permite apreender traços de suas práticas, as tensões e rivalidades inerentes a esse processo. Também possibilitou compreender as apropriações nacionais de um fenômeno que emerge no interstício de dois eventos da atualidade midiática transnacional: a pandemia e a circulação de conteúdos de desinformação.

6 Financiamento

Este trabalho foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — Bolsa Pq 2020; Fundação de Amparo à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF) — Bolsa Edital Demanda Espontânea 2021; e Universidade de Brasília — Edital COPEI 2020.

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Notes

1. Optamos aqui por a grafia do termo em inglês claims-makers, já consagrado na sociologia dos problemas sociais.

2. No original “fake news is co-constructed by the audience, for its fakeness depends a lot on whether the audience perceives the fake as real”. Traduzido pelos autores.

3. No original “are fundamentally products of a process of collective definition”. Traduzido pelos autores.

4. Órgão argentino que canaliza as denúncias e reclamações do público junto aos meios de comunicação. Mais informações em: https://defensadelpublico.gob.ar/.

5. Sobre isso, um antecedente direto foi a denominada “Ley de Medios” (nº 26.522 sancionada e promulgada em 2009) que, até 2024, não havia sido plenamente regulamentada e instrumentada.

6. O projeto busca estabelecer “normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções para o descumprimento da lei” [Senado Federal, 2020]. O PL foi aprovado pela Senado Federal e se encontra parado, em avaliação, na Câmara dos Deputados.

Sobre o autores

Ana Pamela Paz-Garcia. Doctora en Estudios Sociales de América Latina y Magister en Sociología (Universidad Nacional de Córdoba), Investigadora Independiente de CONICET (Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas de Argentina), Profesora de Comunicación y Psicología Políticas (Universidad Católica de Córdoba). Su línea de trabajo abarca el estudio de Procesos Mediatizados de Comunicación Política, Consumo Ideológico de Información Política, Perfiles de Audiencias On y Offline, Mecanismos Cognitivos y Selectivos de Procesamiento, Objetividad Periodística, Fake News y Desinformación Científica.

E-mail: pamela.pazgarcia@unc.edu.ar

Fábio Henrique Pereira é titular da Cátedra Bell de Jornalismo Científico na Université Laval, Canadá. É também professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Suas pesquisas tratam da construção do problema público da desinformação científica e das práticas informacionais dos públicos da ciência. É pesquisador associado aos centros de pesquisa Arènes (França), Cricis (Canadá) e Lapij (Bélgica). Atualmente é um dos editores da revista científica internacional Sur Le Journalisme.

E-mail: fabio-henrique.pereira@com.ulaval.ca

Silvina Chaves es periodista, comunicadora científica y doctora en Comunicación Social. Con amplia experiencia en periodismo científico, se especializa en la comunicación de la ciencia y el ambiente. Actualmente, en la Universidad Nacional de San Luis (Argentina), se dedica a la docencia, investigación y gestión de proyectos de divulgación científica. Su trabajo abarca la producción de contenidos, formación de comunicadores y promoción de la cultura científica, contribuyendo a acercar la ciencia a distintos públicos.

E-mail: chaves.silvina@gmail.com Bluesky: @silchaves