1 Introdução

O acesso aos conhecimentos de diferentes naturezas em uma perspectiva multifacetada da biodiversidade e da sua conservação é essencial para que a sociedade possa participar democraticamente e se engajar na construção de políticas públicas e para a legitimação das ações relacionadas ao meio ambiente. O termo “biodiversidade” abrange uma diversidade de conteúdos e significados e é utilizado em diferentes áreas do conhecimento e contextos sociais. Na educação, o tema requer abordagens variadas e estratégias diversificadas de ensino e divulgação, evitando soluções simplistas baseadas em dicotomias e visões únicas, já que suas questões envolvem, além do conhecimento científico, dimensões sociais e políticas, variados grupos de atores e diferentes posições.

Ações nos níveis global e local têm adotado visões multifacetadas e inclusivas da biodiversidade, como o programa Millennium Ecosystem Assessment e o The Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES). No entanto, essas abordagens que tratam a biodiversidade em sua complexidade estão pouco acessíveis ao público em geral, como mostram as pesquisas realizadas em diversos países [Buijs, Fischer, Rink & Young, 2008; Lude, 2010; Brasil, 2012; UEBT. Union for Ethical BioTrade, 2017].

Museus e jardins botânicos têm historicamente desempenhado um papel crucial na pesquisa e divulgação de informações relacionadas à biodiversidade e à conservação. Portanto, é essencial que suas ações educacionais abordem a biodiversidade em suas diferentes facetas e com um nível maior de complexidade. Isso pode fornecer ao público acesso ao conhecimento valorizado pela comunidade científica e legitimado pela sociedade, contribuindo para atenuar diferenças socioeconômicas. No entanto, questiona-se como esses locais têm contribuído para o acesso a conteúdos mais complexos sobre biodiversidade por meio de suas exposições. Neste artigo, analisamos o discurso sobre biodiversidade e conservação em duas exposições de imersão em jardins botânicos no Brasil: a Estufa do Cerrado (BH) e a Estufa da Caatinga Mineira (SP). Nosso objetivo foi avaliar em que medida esses discursos abordam a complexidade do tema e, portanto, contribuem para a compreensão multifacetada da biodiversidade e sua conservação.

2 Abordagem multidimensional de biodiversidade e conservação

Em 2012, foi criada a Plataforma Intergovernamental de Ciência e Política sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) com o propósito de fornecer conhecimento interdisciplinar para embasar decisões relacionadas à conservação da biodiversidade, bem-estar humano e desenvolvimento sustentável. A IPBES envolve organizações científicas e sociais, governos e populações tradicionais, promovendo o diálogo e a integração de diferentes sistemas de conhecimento, atitudes e valores. O Marco Conceitual da IPBES procura explicar as relações entre seres humanos e natureza, enfatizando a interdisciplinaridade e o respeito mútuo entre diferentes culturas. Essa abordagem transcende a visão simplista das ações humanas sobre o ambiente [Díaz, Demissew, Joly, Lonsdale & Larigauderie, 2015].

Inspirada pela IPBES, em 2017, foi lançada a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) com o objetivo de sintetizar o conhecimento científico e saberes tradicionais sobre biodiversidade, serviços ecossistêmicos e bem-estar humano.

Essas iniciativas refletem a tendência recente de adotar abordagens multidimensionais da biodiversidade e conservação, reconhecendo as interações dinâmicas entre pessoas e natureza, bem como a diversidade de conhecimentos, atitudes e valores em diferentes contextos globais e locais [Mace, 2014].

Embora a biodiversidade e a conservação sejam temas comuns na sociedade, as definições e importâncias atribuídas aos termos variam amplamente. A biodiversidade assume diferentes contornos e pode apresentar definições diversas, relacionadas ao contexto de sua utilização, refletindo em maior ou menor grau os princípios dominantes sobre o tema presentes na sociedade. Ainda que a conservação da biodiversidade seja uma ideia praticamente unânime em diversos contextos sociais, os critérios que a tornam importante e as formas de conservá-la podem não ser claras entre os não-especialistas. Além disso, como apontam Echegaray e Afonso [2014] o nível de engajamento acerca das questões ambientais está altamente relacionado com os contextos sociais.

O conceito de biodiversidade não é exclusivo do meio científico, embora tenha surgido na área acadêmica. Contudo, parecem ser as transformações na relação dos seres humanos com o ambiente que levaram à importância que o conceito tem hoje na sociedade. Assim, para além dos conceitos, fatos e fenômenos científicos, o termo biodiversidade abriga valores intrínsecos, ecológicos, sociais, econômicos, educacionais, culturais, recreativos e estéticos [Pascual et al., 2017].

De acordo com os dados do UEBT diversity barometer, coletados entre 2009 e 2017, o termo biodiversidade vem sendo reconhecido por um número maior de pessoas a cada ano, assim como as definições de biodiversidade consideradas corretas, de acordo com os parâmetros da investigação, vem aumentando [UEBT. Union for Ethical BioTrade, 2017].

No Brasil as pesquisas de opinião realizadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) de 1992 a 2012 vão na mesma direção, mostrando que a conscientização sobre o ambiente natural, biodiversidade e sua importância para a vida humana, aumentou ao longo dos últimos 20 anos. Além disso, a capacidade de reconhecer elementos da biodiversidade também se modificou nesse período, abrangendo conceitos mais sofisticados sobre o que compõe o meio ambiente e a biodiversidade [Brasil, 2012].

Ainda que haja um cenário de crescimento do nível de conscientização, a pesquisa realizada pela UEBT. Union for Ethical BioTrade [2016] mostra que as concepções sobre biodiversidade são, para mais de um terço dos entrevistados, reduzidas à variedade de vegetais e animais e exemplos de ecossistemas. Lude [2010], em investigação conduzida com professores e alunos do ensino superior na Europa, concluiu que para a maior parte deles (80%) as ideias sobre biodiversidade abrangem apenas a variedade de espécies. O trabalho de Buijs e colaboradores [2008], realizado com moradores do entorno, gestores e visitantes de unidades de conservação na Alemanha, mostrou que entre os indivíduos não-especialistas a concepção de biodiversidade é restrita à variedade de espécies e de habitats. Uma concepção semelhante foi encontrada em levantamento feito com público antes da visita a dois museus de história natural, um na Dinamarca e um no Brasil, para os quais a pluralidade de organismos representa a biodiversidade [Marandino et al., 2012].

Ainda de acordo com o UEBT. Union for Ethical BioTrade [2016], a principal fonte de informação sobre biodiversidade é a escola, seguida pela televisão, internet e jornais. Outras instituições tais como museus, parques, institutos ou órgãos de pesquisa e ação ambiental, são citados como fonte de informação na pesquisa realizada com a população pelo MMA [Brasil, 2012].

Biodiversidade e conservação são temas bastante presentes nas ações dos museus de história natural, centros de ciências, jardins botânicos e zoológicos. Para Porcedda e colaboradores [2006], a emergência das questões ambientais a partir da década de 70 teve grande influência sobre as exposições dos museus de ciências, introduzindo novas concepções e formas de abordagem da biodiversidade e conservação, no sentido de repensar a relação do ser humano com a natureza, conciliando dois aspectos aparentemente antagônicos: desenvolvimento e conservação ambiental.

3 Uma perspectiva sociológica de análise: estudo de exposições de imersão a partir da teoria do discurso pedagógico de Bernstein

A análise sobre como as questões ambientais vêm sendo tratadas em exposições de museus deve levar em consideração a função social destas instituições, bem como os contextos históricos e sociais onde se inserem. As diversas ações desenvolvidas pelos museus podem ser analisadas a partir da premissa de que elas são discursos que possuem uma mensagem. Para Pedretti [2012], as exposições científicas encerram mensagens expressas por meios que, por sua vez, moldam a mensagem influenciando sua qualidade e conteúdo, além da própria resposta do público. Estes discursos expositivos são construídos com o envolvimento de diferentes atores sociais com diferentes bagagens de conhecimento e que estão imersos em um determinado contexto sociocultural, político e econômico.

A compreensão do discurso expositivo pode ser realizada entendendo-o como um discurso pedagógico, de acordo com a teoria proposta por Basil Bernstein. Os trabalhos de Bernstein trazem uma combinação única entre poder e controle de todas as formas de transmissão educacional, considerando diversos campos que atuam na produção e transmissão da cultura, integrando macro e micro níveis da sociedade. Suas teorias têm caráter singular pois integram estrutura, cultura, linguagem e discurso [Arnot, 2003].

De acordo com Mainardes e Stremel [2010], o discurso pedagógico, tal como concebido por Bernstein, trata também dos princípios que regulam os processos de recontextualização. Nestes processos ocorre uma descontextualização de um discurso de sua prática e contexto originais, e recolocação dele com base em princípios de focalização e reordenamentos seletivos de um novo contexto. Com isso, há a produção de um novo discurso, pois as ideias originalmente propostas são inseridas em outros contextos que permitem e demandam releituras, reinterpretações e mudanças nos significados iniciais.

O modelo do discurso pedagógico inclui três níveis fundamentais de análise: geração, recontextualização e transmissão (Figura 1). No nível da geração ocorre a produção e posicionamento do discurso pedagógico, com a criação de novas ideias e modificação de outras já existentes, além da produção dos discursos especializados. No nível da recontextualização, o texto original é reelaborado e adaptado com fins educacionais. O papel das agências e agentes que atuam nesse nível é definir os significados legítimos (categorias, conteúdos e relações a serem transmitidas) e as formas legítimas de sua transmissão. O nível de transmissão está ligado ao contexto de reprodução do discurso. O discurso pedagógico de reprodução pode ser definido pela relação entre discurso instrucional (conhecimentos e competências) e discurso regulador, relacionado com a aquisição de valores, normas de conduta social e competências socioafetivas [Bernstein, 1996].

PIC

Figura 1: Modelo do discurso pedagógico, mostrando os níveis de análise e principais agências que neles atuam. As setas estreitas mostram que todos os níveis influenciam a mensagem do discurso pedagógico de reprodução e as setas largas mostram que as agências e agentes de um determinado nível influenciam e são influenciados pelos elementos que atuam nos outros níveis.

As mensagens presentes no discurso pedagógico dependem do posicionamento dos agentes e agências nos diferentes níveis do dispositivo. Um aspecto essencial da teoria proposta por Bernstein é que o processo de produção e reprodução do discurso pedagógico é extremamente dinâmico. Fontes potenciais de conflito, resistência e inércia estão presentes entre os agentes que atuam no processo de recontextualização e no nível da transmissão [Morais, 2005]. Pode existir assim, uma dinâmica entre posições, sujeitos e práticas dependendo da autonomia desses elementos. O dinamismo é a característica que pode propiciar mudanças nas estruturas de poder e controle.

Essa característica é de especial interesse quando defendemos o acesso ao conhecimento complexo sobre biodiversidade. As pesquisas conduzidas pelo grupo de Estudos Sociológicos de Sala de Aula (ESSA), mostram que a prática pedagógica pode contribuir para atenuar diferenças socioeconômicas, sem que seja necessário diminuir a complexidade de conteúdos. Os trabalhos do grupo aplicando a teoria de Bernstein para análise de currículos, materiais pedagógicos e práticas [Calado & Neves, 2012; Calado, Neves & Morais, 2013], consideram que a complexidade dos conteúdos deve ser alta, oportunizando a todos os alunos o acesso ao conhecimento científico valorizado pela comunidade científica e legitimado na sociedade.

Com base em pressupostos da teoria de Bernstein, Young [2007] argumenta que o acesso ao “conhecimento poderoso”, que se refere especificamente ao papel do conhecimento em fornecer explicações confiáveis ou novas formas de pensar a respeito do mundo, pode ser transformador. Isso porque tal acesso pode levar o indivíduo a superar a condição da experiência, empoderando-se do instrumental mais abrangente, que para além da formação de sua própria identidade, permite influenciar nas transformações e no empoderamento da comunidade na qual está inserido.

No contexto da educação em museus, as pesquisas utilizando a teoria do discurso pedagógico buscam caracterizar as agências e agentes presentes nos três níveis de produção do discurso pedagógico do museu, mas também o processo de recontextualização e de aquisição do conhecimento nesses locais [Botelho, 2001; Marandino et al., 2012; Martins, 2011; Souza, 2017].

Na perspectiva sociológica, a análise das ações educativas dos museus, incluindo entre elas as suas exposições, demanda conhecer o tipo de vinculação e o papel institucional desempenhado nos contextos nacionais e locais. Diferentes agências, como órgãos governamentais, institutos de pesquisa, empresas, entre outros, realizam em maior ou menor grau a regulação das práticas educacionais dos jardins botânicos, por meio de políticas públicas e formas de financiamento específicas. Assim sendo, o discurso expositivo é fruto de processos de adaptação e reelaboração de textos realizados por diferentes instâncias e agentes internos, influenciados ainda por agentes e agências externas à instituição [Marandino, 2016; Souza, 2017].

O discurso expositivo, compreendido como um discurso pedagógico, contém na sua mensagem os conteúdos, relações, princípios e normas advindos dos discursos produzidos nos níveis de geração e recontextualização. Contudo, o discurso pedagógico também reflete na sua mensagem, o conjunto de opções adequadas a um determinado contexto e influenciadas por possíveis recontextualizações no processo de transmissão [Neves, Morais, Medeiros & Peneda, 2000].

Dependendo do posicionamento ideológico e pedagógico dos agentes que atuam nos processos de recontextualização, o nível de conhecimento poderá ser rebaixado, com a justificativa de torná-lo acessível a todos. No entanto, se considerarmos a diversidade sociocultural e que todos os indivíduos possuem possibilidades de adquirir conhecimento científico mais complexo, deve-se facilitar aos menos favorecidos o acesso aos conhecimentos que são privilegiados pela comunidade científica e pelos grupos de poder na sociedade [Ferreira, Morais & Neves, 2011; Morais, Neves & Ferreira, 2014].

Essa mesma premissa pode ser assumida no caso dos museus, levando em consideração a heterogeneidade de públicos que os museus e instituições culturais recebem, além do importante papel social desses espaços para a democratização do acesso à cultura. Vale lembrar que, assim como existe um conjunto de conhecimentos científicos privilegiados, há também uma cultura elitizada que é legitimada pela escola, museus e instituições congêneres [Bourdieu & Darbel, 2003], por meio das mensagens presentes nos discursos expositivos. Dar oportunidade de acesso a essa cultura para um número maior de indivíduos é uma forma de diminuir as diferenças socioculturais.

Neste trabalho, utilizamos a teoria do discurso pedagógico proposta por Basil Bernstein, para realizar a análise dos discursos expositivos e de seus processos de recontextualização em duas exposições de imersão de dois jardins botânicos brasileiros: a Estufa do Cerrado, sediada no Jardim Botânico de São Paulo, e a Estufa da Caatinga Mineira, sediada na Fundação Zoo-botânica de Belo Horizonte.

Além de possuírem temáticas semelhantes e estarem sediados em jardins botânicos, as exposições analisadas compartilham uma concepção expositiva que propicia aos visitantes a imersão nos ambientes, como se estivessem visitando o meio original. De acordo com Marandino e Diaz Rocha [2011], as exposições de imersão utilizam técnicas museográficas que estimulam os cinco sentidos, associadas a informações científicas. Essa concepção expositiva permite que a experiência da visita articule aspectos cognitivos, afetivos e sensoriais, convidando o visitante a mergulhar na temática e experimentar a mensagem [Belaën, 2003].

4 Aspectos metodológicos

4.1 Proposta de análise das exposições com base nos conceitos de Bernstein

Para estudar o processo de recontextualização foi realizada a análise dos discursos expositivos das exposições selecionadas. Eles foram caracterizados quanto à interdisciplinaridade, ou seja, as relações entre os saberes e/ou áreas de conhecimentos. Essa dimensão de análise e as características do processo de recontextualização nos permitem apontar alguns aspectos sobre o nível de complexidade com que a biodiversidade e sua conservação são apresentadas nas exposições. Desse modo, é possível discutir qual a contribuição destas exposições para dar acesso aos visitantes a multidimensionalidade dos temas abordados.

Do ponto de vista metodológico, a pesquisa teve caráter misto [Johnson & Onwuegbuzie, 2004; Creswell & Clark, 2007] e foi realizada por meio da análise de documentos oficiais como leis, programas e editais voltados a temática da biodiversidade, atas de reuniões e pesquisas referentes às exposições. Também foram realizadas entrevistas com os conceptores e observações das exposições. A coleta de dados foi realizada por meio de roteiros estruturados com a finalidade da identificação dos agentes, agências e de suas posições nas relações de poder e controle sobre o processo de recontextualização. E ainda, através do levantamento dos significados selecionados para compor os discursose das formas de transmissão desses.

Para a análise dos discursos expositivos da Estufa do Cerrado e da Estufa da Caatinga Mineira, foram definidas unidades que correspondem a trechos de textos, objetos e imagens presentes nas exposições, conforme mostra a Figura 2. Todas as unidades possuem conteúdos relacionados à biodiversidade. A proposta de definição de unidades de análise tem como base pesquisas que utilizam a teoria de Bernstein para avaliar os discursos em contextos da educação formal [Morais et al., 2014]. De forma a incluir as especificidades do contexto museal, além dos textos, compõem as unidades de análise, os objetos, imagens, vídeos e outras mídias presentes em exposições.

PIC

Figura 2: Exemplo de unidade de análise contendo objeto, texto e imagem.

As unidades foram agrupadas em módulos expositivos, apresentados na caracterização das exposições, tomando por base os subtemas explicitados nos documentos analisados e a observação das exposições. Foram analisadas 93 unidades presentes na exposição Estufa do Cerrado e 24 unidades na Estufa da Caatinga Mineira.

Cada unidade de análise foi categorizada de acordo com um instrumento desenvolvido para avaliar a presença e o grau das relações interdisciplinares identificados nos discursos expositivos, apresentado à frente. Tal instrumento de análise, tem como base o conceito de classificação proposto por Bernstein [1990]. Segundo o autor, o processo de recontextualização se dá pelo princípio da classificação, que diz respeito ao grau de separação existente entre as categorias ou discursos [Bernstein, 1998]. Uma classificação é forte quando uma categoria é especializada de forma diferente da outra categoria. Isso significa que há um grande espaço entre elas, denominado por Bernstein como isolamento, que é criado e mantido pelas relações de poder. Qualquer mudança na categoria, significa romper o isolamento e expor as relações de poder. Porém, em algumas situações as categorias não são tão especializadas, havendo uma classificação fraca. Aqui as relações de poder existem, mas são muito menos explícitas.

A Figura 3 resume as características dos discursos expositivos analisadas (as relações entre discursos — interdisciplinaridade) e apresenta, de forma geral, a ideia de classificação.

PIC

Figura 3: Características das relações entre discursos consideradas para a análise. A última linha mostra que quanto mais isoladas são as categorias, mais nítidas são as fronteiras entre os discursos e, portanto, mais forte é a classificação (C+). Por outro lado, quanto mais próximas as categorias, mais difícil de identificar as fronteiras e, portanto, a classificação pode ser fraca (C-) ou mesmo muito fraca (C–).

Após a categorização das unidades de análise, discutimos as relações entre os discursos com base na análise dos documentos levantados e entrevistas realizadas junto às pessoas que participaram do projeto das exposições (conceptores), bem como em diálogo com a bibliografia da área.

4.2 Caracterizando as exposições estudadas

A Estufa do Cerrado está sediada no Jardim Botânico de São Paulo, ligado ao Instituto de Botânica, que por sua vez é um órgão da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. O Jardim e o Instituto estão inseridos em um parque estadual, fazendo parte portanto de uma Unidade de Conservação.1 A exposição sobre o Cerrado foi concebida por uma equipe formada por dois pesquisadores das Ciências Biológicas, sendo especialistas das áreas de ecologia e botânica do Cerrado. Além deles, outros agentes e agências foram envolvidos na produção da exposição, estabelecendo relações com o discurso científico. Funcionários do Instituto realizaram a coleta e plantio de espécies, além de obras de infraestrutura. Para o desenvolvimento da expografia, incluindo cenografia, iluminação e mobiliário, foi contratada uma organização social especializada na produção de exposições de ciências. Por fim, a produção dos textos da exposição e intermediação com a equipe de expografia foi liderada por uma bióloga. O financiamento foi feito por meio de verbas de compensação ambiental, isto é, ressarcimento monetário ao estado por impactos ambientais causados por empresas. Conforme a legislação brasileira, tais verbas só podem ser utilizadas em parques ou outras Unidades de Conservação.

A área expositiva da Estufa do Cerrado é de aproximadamente 360 m2, com proposta imersiva. Para estudar a exposição, dividimos seu espaço em oito módulos, com base nos aspectos e sub-temáticas apresentadas. As principais características dos módulos estão resumidas na Tabela 1.

PIC
Tabela 1: Características temáticas e expográficas da Estufa do Cerrado.

Já a exposição Estufa da Caatinga Mineira está presente na Fundação Zoobotânica de Belo Horizonte, administrada indiretamente pela Prefeitura da cidade, estando vinculada à Secretaria Municipal de Meio Ambiente. O financiamento nesse caso foi realizado pela iniciativa privada, por meio do “Prêmio Projetos Educacionais — Modelos nos Jardins Botânicos brasileiros” concedido pelo “Projeto Investindo na Natureza — Brasil”, iniciativa do órgão internacional de jardins botânicos — Botanic Gardens Conservation International (BGCI), com apoio do banco HSBC. A execução do projeto contou com a participação direta de nove pessoas, sendo quatro delas do Jardim Botânico, outras quatro do Serviço de Educação Ambiental (SEA) e uma do Jardim Zoológico. Durante a coleta de espécies, montagem da exposição e produção dos materiais educativos participaram outros funcionários da FZB-BH, além do auxílio técnico de membros da Sociedade de Amigos da FZB-BH para a realização de orçamento e prestação de contas.

A exposição sobre a Caatinga possui 158 m2 e assim como a Estufa do Cerrado, possui expografia imersiva. Para estudá-la dividimos a exposição em seis módulos cujas principais características estão resumidas na Tabela 2.

PIC
Tabela 2: Características temáticas e expográficas da “Estufa do Caatinga Mineira”.

5 A análise das exposições: estudando as relações entre os discursos na produção do discurso expositivo

5.1 Sobre as relações entre os discursos: a interdisciplinaridades nas exposições estudadas

A existência de relações entre os discursos das diferentes áreas suaviza com maior ou menor intensidade as fronteiras e, em geral, ampliam a integração entre conteúdos, possibilitando abordar conhecimentos de ordem mais complexa, com maior nível de abstração [Morais, 1991]. Segundo Bernstein [1996], se os discursos são muito especializados, cada qual possui uma identidade específica que só pode ser mantida e reproduzida caso as categorias sejam conservadas.

Partindo do conceito de classificação proposto por Bernstein e das pesquisas que investigam as relações entre discursos, elaboramos o instrumento de análise que caracteriza a interdisciplinaridade nos discursos presentes nas exposições (Tabela 3).Foram estabelecidos três graus de classificação em uma escala de ampliação das relações entre os conhecimentos, que vai de C+ (forte) a C (muito fraca). Quando não são estabelecidas relações entre as disciplinas (biologia, geologia, climatologia, museologia) e/ou áreas de conhecimento (ciências naturais, educação, expografia, saberes tradicionais), ou quando essas relações são ilustrativas considera-se que a classificação é forte. Já quando possuem conexão ou mesmo não é possível identificar fronteiras definidas entre eles, a classificação é considerada fraca ou muito fraca, neste casoconsideramos a existência de interdisciplinaridade em diferentes graus.

PIC
Tabela 3: Interdisciplinaridade: relação entre saberes e/ou conhecimentos de diferentes áreas.

Após a categorização das unidades de análise (ver Figura 3), foi calculada a frequência de cada grau de relacionamento no conjunto das unidades (total) e por módulo. Os resultados são apresentados na Figura 4.

PIC

Figura 4: Grau de relação entre os conhecimentos de diferentes disciplinas ou áreas, por módulo e total.

Considerando o conjunto das unidades de análise da exposição Estufa do Cerrado, nota-se que há uma distribuição bastante similar entre os três graus de classificação no total das unidades analisadas. As relações fracas (C-) representam 34% do total e os outros dois graus, classificações fortes (C+) e muito fracas (C–) estão presentes em 33% do total das unidades cada uma. Isso mostra que há um equilíbrio entre os graus de classificação no total das unidades analisadas. Contudo, esse equilíbrio não ocorre na análise por módulo.

A Figura 5 mostra um exemplo de classificação forte (C+) presente na Estufa do Cerrado. Nela podemos identificar a presença do discurso da biologia na narrativa das características e hábitos de vida do animal. Apesar da presença da imagem, elemento que faz parte da expografia, sua função é meramente ilustrativa da informação biológica e sequer é citada no texto.Não há objetos associados à placa.

PIC

Figura 5: Estufa do Cerrado, unidade 9, módulo 4. Placa com texto e imagem.

Transcrição do texto:

“Siriema

Cariama cristata — Família: Cariamidae

De porte imponente, chegando a 90 cm de altura, a ave tem plumagem pardo-cinzenta, com finas riscas escuras, pernas e bico vermelhos. Possui longa crista — uma de suas características mais marcantes. Seu canto, que lembra longas risadas, é tão alto que pode ser ouvido a um quilômetro de distância. Costuma cantar em dueto. Alimenta-se de insetos e pequenos vertebrados, como cobras, que ataca com seu poderoso bico. Tem hábitos terrestres e anda normalmente em duplas. Quando ameaçada, afasta-se correndo e, em último caso, voa, revelando as faixas claras e escuras de suas asas.”

Já na exposição da Estufa da Caatinga Mineira, a análise do conjunto dos módulos mostra que as classificações fracas (C-) são predominantes, representando 54% do total de unidades. A classificação muito fraca representa 41% do total e apenas 5% das unidades são de classificação forte. Assim como na outra exposição há uma grande variação de distribuição das classificações nos módulos e apenas um deles (M1) possui unidades de classificação forte.

Um exemplo de classificação muito fraca (C–), referente à Estufa da Caatinga Mineira, é apresentado na Figura 6. Nela podemos observar a relação entre conhecimentos da biologia, principalmente da área de botânica, com a expografia e os saberes tradicionais. No texto é possível notar como a cultura tradicional está relacionada à natureza, característica que aparece também na expografia que representa uma casa de adobe, técnica de construção de habitações realizada pelas populações tradicionais, utilizando materiais presentes no ambiente como o barro, para a produção dos tijolos. Há ainda uma vitrine com sementes identificadas quanto à espécie botânica e seu uso pelas populações tradicionais para fins medicinais.

PIC

Figura 6: Estufa da Caatinga Mineira, unidade 5, módulo 3. Em A nota-se a parte externa da casa tradicional, a placa com texto e espécies de cactos que são comumente encontradas na Caatinga e plantadas pelas comunidades. Em B e C, vê-se o interior da casa tradicional com objetos de uso diário e artesanatos. Na imagem D, a vitrine com sementes medicinais.

Transcricão do texto da placa:

“A cultura é uma das grandes riquezas das regiões onde ocorre a Caatinga Mineira. É integrada com a natureza e tem íntima relação com as atividades econômicas, especialmente a agricultura e a pecuária. Com origem nas antigas comunidades indígenas e africanas locais, essa cultura manifesta-se de diversas formas, como exemplos podemos citar: culinária, música, uso de plantas medicinais, religiosidade e vestimentas.”

5.2 Sobre os tipos de saberes presentes nos discursos expositivos

O predomínio de classificações mais fracas (fracas e muito fracas) que totalizam 67% das unidades na Estufa do Cerrado e 95% na Estufa da Caatinga Mineira, mostra que de forma geral, saberes diversos e conhecimentos de diferentes áreas estão articulados nas exposições analisadas, contribuindo para uma abordagem mais complexa da biodiversidade.

De acordo com Marandino [2001], para além do discurso científico, podem estar presentes nas mensagens das exposições os discursos educacional, museológico, expográfico, da divulgação e comunicação da ciência, além das áreas técnicas como iluminação, carpintaria, eletrônica etc. A interdisciplinaridade, considerando as características das exposições analisadas, está a priori presente, tanto por terem “biomas” como temática principal, quanto pela expografia que integra objetos, textos e outros aparatos de acordo com uma narrativa.

Nossos resultados mostraram que nas unidades de análise em que há menor integração, grau elevado de classificação (C+), não há objetos, imagens ou aparatos associados ao texto. Assim sendo, percebe-se que a presença de elementos expográficos são estratégias que contribuem para uma maior relação entre discursos de diferentes áreas e, assim, favorecem o acesso à informação mais complexa sobre biodiversidade.

As relações entre discursos de diferentes áreas do conhecimento científico nas exposições são inerentes a própria ideia de bioma. De acordo com as entrevistas junto aos conceptores do conteúdo científico da exposição sobre o Cerrado, o bioma é formado por um conjunto de aspectos estudados por diferentes áreas de conhecimento. Para eles, era essencial que a exposição abordasse os temas fogo, solo, clima e fatores bióticos, e como eles se relacionam formando paisagens diferentes, que, no conjunto, possuem uma unidade. Assim, o discurso científico é composto por vozes das áreas da biologia, geologia, geografia, climatologia, entre outras.

Ao aprofundarmos a análise das relações entre as áreas e disciplinas, notamos que dentre os conhecimentos biológicos, há ênfase nas áreas da botânica e ecologia. Conforme as entrevistas e observações, essas áreas são evidenciadas por conta de três questões fundamentais. A primeira delas refere-se aos agentes do processo de recontextualização envolvidos na concepção da exposição desde o conceito inicial. São eles pesquisadores de referência das áreas de botânica e ecologia do Cerrado, situados, portanto, no campo do controle simbólico e responsáveis pelo projeto junto à instituição que abriga a exposição.

A segunda questão relevante para o maior estatuto dessas áreas, em especial a botânica, diz respeito à instituição que abriga a exposição, um jardim botânico. Além disso, a exposição foi realizada sob a chancela do Instituto de Botânica e da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São Paulo. Esse contexto, para além de explicar a ênfase em determinados conhecimentos, é essencial para a compreensão das escolhas que foram feitas e das várias relações que foram estabelecidas, destacando que esses agentes e agências tiveram maior poder de decisão na concepção e produção da exposição sobre o Cerrado. De acordo com Silva e Loureiro [2015], as narrativas expositivas que têm origem no conhecimento científico, como aquelas presentes em museus de história natural, espelham as áreas de investigação dos conceptores, dando legitimidade às informações. Os autores afirmam ainda que o discurso expositivo permite revelar as relações de poder subjacentes à estrutura institucional, na medida em que as instituições autorizam quais informações podem ser disponibilizadas e, portanto, quais delas constituem ou não os conhecimentos válidos.

Em terceiro lugar, a maior presença dos discursos especializados da ecologia e botânica pode ser explicada pela escolha de uma concepção imersiva da exposição. Na Estufa do Cerrado, a reprodução do ambiente natural é feita com base na apresentação das fisionomias do bioma, caracterizadas pela variação na densidade, altura e composição da vegetação. Os elementos de fauna aparecem em pequeno número. Essa representação simula a experiência que um visitante teria na natureza, onde primeiro são percebidos aspectos relacionados às formas de vegetação e à inserção delas na paisagem, além de aspectos abióticos, como a camada superficial do solo e o curso d’água. Apenas num segundo momento, com um olhar mais atento, podem ser percebidos elementos ligados à fauna. Nesse caso, assim como em outros biomas brasileiros, os elementos da fauna não são, na maioria das vezes, de fácil visualização. Normalmente a presença de animais é feita de forma indireta, por meio de indícios como sons, cheiros e vestígios.

A análise da exposição Estufa da Caatinga Mineira mostra uma grande presença de unidades fracamente classificadas. Assim como na exposição da Estufa do Cerrado, consideramos que o próprio tema “bioma” propicia a relação de discursos científicos de diferentes áreas. Neste caso também se verifica uma maior presença do discurso da botânica por conta da relação institucional da Fundação Zoo-Botânica a qual esta exposição pertence, bem como pelo financiamento da exposição ter sido realizado sob a chancela do órgão internacional de jardins botânicos — Botanic Gardens Conservation International (BGCI).

5.3 Sobre a presença dos saberes culturais e o papel da museografia

Chama a atenção na exposição sobre a Caatinga a importância dada aos saberes tradicionais, especialmente no que se refere às questões culturais das populações humanas que vivem nesse ambiente. As entrevistas com a equipe de concepção da exposição mostraram a intenção de valorizar o bioma, tanto do ponto de vista da sua flora, fauna e interações, quanto enfatizar a diversidade cultural abrangendo a íntima relação entre o sertanejo e o ambiente em que vive.

Os aspectos culturais estão fortemente presentes na exposição, representados por exemplo, na reprodução de uma moradia típica de casa de adobe (com mobiliário característico) e uma barraca de feira de plantas medicinais (Figura 6), além de objetos de artesanato da região. O discurso expositivo agrega assim, outras áreas de conhecimento para além do discurso das ciências naturais, como a antropologia e ciências sociais, além dos saberes tradicionais sobre uso medicinal de plantas e técnicas de construção, trazendo à cena outros discursos e outras possibilidades de relações. Vale destacar que na Estufa da Caatinga Mineira, o módulo sobre o sertanejo ocupa quase um terço da exposição. Na Estufa do Cerrado os aspectos culturais aparecem apenas no final da exposição.

É importante perceber o relevante papel da expografia na análise do jogo de relações entre as áreas e conhecimentos presentes na constituição dos discursos expositivos. Este campo de conhecimento pode ser considerado também um discurso, e sua presença pode estar mais ou menos articulado com as demais áreas ou discursos na exposição [Marandino, 2016]. Nossa análise evidenciou que esse discurso assume papel essencial a partir da concepção imersiva que, de acordo com os conceptores de ambas as exposições, era a forma desejada para tratar dos biomas. Houve assim a intenção explícita de promover uma experiência sensorial de visita pois a ideia era que o visitante pudesse conhecer os biomas por meio de uma vivência próxima a “real”. Além disso, para os conceptores esse tipo de exposição possibilita uma maior aprendizagem de conhecimentos, sendo esta também uma das razões por optarem por ela.

O discurso da área da expografia pode estar mais ou menos legitimado nas exposições, de acordo com as relações estabelecidas entre instituições e agentes envolvidos na concepção desses espaços. Na Estufa do Cerrado foi contratada uma empresa de expografia, e ainda que a instituição sede e os agentes (pesquisadores da de áreas das ciências biológicas) tenham tido maior poder de decisão final, houve uma relação de troca importante com as equipes de concepção da expografia. De acordo com membros dessa equipe, formas de apresentação e escolha de objetos foram sugeridas pelos designers e arquitetos e, por vezes, acabaram influenciando as decisões sobre qual e como o conteúdo científico seria apresentado. Evidências dessa negociação entre os diferentes atores foi a diminuição do tamanho dos textos inicialmente propostos pelos pesquisadores responsáveis, além da escolha de imagens e de objetos interativos sugeridas por estes profissionais.

Já na exposição sobre a Caatinga, a expografia foi realizada pelos próprios membros do projeto, pesquisadores e técnicos das áreas de botânica e educação ambiental da Fundação Zoo-botânica de Belo Horizonte. Nesse caso, o discurso expográfico advém mais da experiência prática da equipe do que da formação específica. Assim, consideramos que a composição da equipe no caso desta exposição, contribui para que as relações entre os discursos científicos, educacionais e expográfico fossem mais horizontais, explicando a maior presença de unidades de análise de graus mais fracos de classificação nessa exposição.

Quanto ao discurso da área da educação, notamos que apesar de presentes em ambas as exposições, ele está mais legitimado na exposição Estufa da Caatinga Mineira. Essa característica pode ser explicada pela participação dos profissionais do Serviço de Educação Ambiental da FZB-BH na concepção da Estufa da Caatinga Mineira. De acordo com as entrevistas com os conceptores de conteúdo, a educação ambiental foi sempre um pilar do projeto, tanto por conta do financiamento ter sido feito por um prêmio para projetos educacionais em jardins botânicos, quanto pela própria missão institucional e ideologia dos envolvidos. Isso se reflete no principal objetivo do projeto, nas escolhas de conteúdo e nas formas de apresentá-los. Ainda de acordo com os conceptores entrevistados, a preocupação em fazer textos de fácil acesso para os diversos públicos, definições de termos e conceitos e as imagens associadas, são aspectos ligados à função educativa da exposição.

Como contrapartida das instituições, funcionários dos jardins botânicos participaram da produção da exposição. Destacamos a participação dos jardineiros que possibilitaram a realização da área de representação do ambiente natural, além de integrar a equipe de coleta dos espécimes vegetais em remanescentes dos biomas. O tipo de vínculo desses agentes com os demais conceptores e com a instituição também contribui para que as relações entre os discursos técnicos e científicos sejam estabelecidas. Na Estufa da Caatinga Mineira, funcionários da própria Fundação Zoo-botânica de Belo Horizonte participaram ainda, da produção do mobiliário e, em particular, da construção da casa de adobe, agregando ao discurso expositivo conhecimentos tradicionais das populações da Caatinga Mineira.

6 Considerações finais

Como pressuposto desta pesquisa, consideramos que espaços como jardins botânicos e instituições congêneres, devem abordar temas complexos como biodiversidade e sua conservação de forma mais multifacetada, permitindo que o público acesse conhecimentos científicos e competências de diferentes níveis de complexidade, e sobretudo conteúdos que integrem as diferentes dimensões acerca do tema.

De forma geral, a análise dos discursos quanto às relações interdisciplinares revela que as exposições contribuem para o acesso ao conhecimento complexo sobre biodiversidade. Isso é expresso, em ambas as exposições, pela maior frequência de classificações fracas e muito fracas, apontando para mensagens que valorizam a interdisciplinaridade. Conforme apontou a análise, tal resultado se deve tanto à temática das exposições, quanto às características do contexto em que se estabelecem diversas relações entre os discursos científico, expográfico, educacional, entre outros.

Ao aprofundar a análise das relações entre os saberes e/ou áreas do conhecimento, nota-se na exposição sobre o Cerrado a forte presença do discurso científico da biologia, especialmente da área da botânica e ecologia. Apontamos que o estatuto elevado dessas áreas está relacionado ao processo de recontextualização do discurso expositivo do qual participaram agentes do campo simbólico (pesquisadores) e agências que constituem órgãos governamentais do meio ambiente e pesquisa em botânica. Esses agentes e agências operam discursos dominantes e regulam relações sociais [Bernstein, 2000], evidenciando as relações de poder que estão embutidas na mensagem da exposição do Cerrado. O predomínio dos discursos das áreas especializadas pode ser explicado por conta desses conhecimentos e das relações entre eles serem aqueles legitimados na sociedade, uma vez que têm origem no campo simbólico, dominado pelos grupos sociais que têm acesso ao conhecimento poderoso. Por sua vez, o discurso expositivo acaba por legitimar esses conhecimentos e relações junto à sociedade, mantendo as relações de poder.

A maior valorização da interdisciplinaridade presente na mensagem global da exposição Estufa da Caatinga Mineira está também relacionada ao processo de recontextualização. Nesse caso, a concepção foi desde o princípio bastante partilhada entre os agentes e a forma de financiamento, por meio de um prêmio aos projetos de educação para a conservação, propiciou dar “voz” a outros discursos. Destaca-se a presença das questões sobre a cultura regional da Caatinga Mineira, agregando ao discurso expositivo saberes e conhecimentos de outras áreas, para além do discurso científico e expográfico, alinhando-se assim, a uma visão mais multifacetada da biodiversidade, que inclui nesse caso o ser humano como parte da natureza.

As questões discutidas neste capítulo mostram as possibilidades e desafios de incluir nas exposições e demais ações educativas dos museus, outros conhecimentos e novas formas de abordá-los que ajudem o público a entender a complexidade das questões sobre biodiversidade e auxiliem na legitimação de outros discursos junto à sociedade. Reforçamos que o acesso ao conhecimento poderoso pode permitir que os visitantes acessem significados que contribuem para o empoderamento de um instrumental mais abrangente, contribuindo para o engajamento nas questões sobre conservação, desenvolvimento sustentável e bem-estar humano. Além disso, entendemos que abordagens mais multidimensionais e integradoras, possibilitam ampliar o interesse do público por temas complexos, como é o caso da biodiversidade.

Consideramos ainda que outros conteúdos e relações com os discursos presentes nas mensagens das exposições podem ser explorados por meio de diferentes estratégias tais como, atividades de mediação com a presença de educadores, encontros com os diferentes atores envolvidos na produção de conhecimentos sobre a temática (populações tradicionais, governantes, cientistas, professores), materiais didáticos, entre outras. Destacamos também a importância das instituições museais conhecerem melhor seus visitantes e o público potencial, quanto às suas expectativas e necessidades, no sentido de adaptar e na medida do possível, construir junto com o público, ações que permitam abranger os significados variados sobre a biodiversidade e explorem as diferentes soluções para problemas aparentemente antagônicos como conservação e desenvolvimento.

Por fim, vale destacar que a análise realizada levou em consideração as potencialidades dos discursos expositivos na promoção do acesso a conteúdos de maior complexidade sobre a biodiversidade. A metodologia empregada e a análise realizada tiveram como foco a análise do discurso expositivo, ou seja, buscou-se compreender as mensagens presentes nas exposições. Todavia, é preciso conhecer a interação do público com essas mensagens e ainda, a compreensão e acesso dos visitantes a conhecimentos multifacetados como a biodiversidade. Reforçamos, portanto, a importância desse tipo de análise para uma compreensão de todo o processo de produção e recontextualização dos discursos, bem como da decodificação das mensagens presentes em exposições pelo público. Destacamos ainda que a teoria de Bernstein e as metodologias mistas foram utilizadas para avaliar como o público compreende temas científicos em exposições [Botelho & Morais, 2003], mostrando o potencial desse arcabouçopara ampliar o panorama dos processos e práticas da educação em museus.

Referências

Arnot, M. (2003). Sociologia da pedagogia de Basil Bernstein: Diálogos femininos e elaborações feministas. Educação, Sociedade & Culturas 19, 7–48. Recuperado de https://www.fpce.up.pt/ciie/?q=publication/revista-educa%C3%A7%C3%A3o-sociedade-culturas/edition/educa%C3%A7%C3%A3o-sociedade-culturas-19

Belaën, F. (2003). L’analyse de l’apparition d’un nouveau genre culturel dans les musées des sciences: les expositions d’immersion [Analysis of the appearance of a new cultural genre in science museums: immersion exhibitions], Em International Cultural Heritage Informatics Meeting, 28 de junho–3 de julho de 2003. University of Bucarest, Bucarest, Romania, Paris, France.

Bernstein, B. (1990). Poder, educacion y consciência: sociología de la transmisión cultural. Barcelona, Spain: El Roure Editorial.

Bernstein, B. (1996). A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis, Brazil: Vozes.

Bernstein, B. (1998). Pedagogía, control simbólico e identidad: teoria, investigación y crítica. Madrid, Spain: Ediciones Morata.

Bernstein, B. (2000). Pedagogy, symbolic control and identity: theory, research, critique. London, U.K.: Rowman & Littlefield.

Botelho, A. (2001). Museus interactivos e desenvolvimento científico — estudo sociológico de desempenhos e aprendizagens dos alunos (Tese de Mestrado, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal).

Botelho, A. & Morais, A. M. (2003). O que fazem os alunos num centro de ciência uma análise das interacções com módulos científicos participativos. Revista Portuguesa de Educação 16, 157–192. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37416108

Bourdieu, P. & Darbel, A. (2003). O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Trad. Guilherme João de Freitas Ferreira. São Paulo, Brazil: Editora da Universidade de São Paulo: Zouk.

Brasil (2012). O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável: pesquisa nacional de opinião. Principais resultados. Rio de Janeiro, Brazil: Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental/Overview. Recuperado de https://antigo.mma.gov.br/publicacoes/responsabilidade-socioambiental/category/90-producao-e-consumo-sustentaveis.html?download=989:o-que-o-brasileiro-pensa-do-meio-ambiente-e-do-consumo-sustentavel

Buijs, A. E., Fischer, A., Rink, D. & Young, J. C. (2008). Looking beyond superficial knowledge gaps: understanding public representations of biodiversity. International Journal of Biodiversity Science & Management 4 (2), 65–80. doi:10.3843/biodiv.4.2:1

Calado, S. & Neves, I. P. (2012). Currículo e manuais escolares em contextos de flexibilidade curricular: estudo dos processos de recontextualização. Revista Portuguesa de Educação 25 (2), 53–93. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37425191004

Calado, S., Neves, I. P. & Morais, A. M. (2013). Conceptual demand of science curricula: a study at the middle school level. Pedagogies: An International Journal 8 (3), 255–277. doi:10.1080/1554480x.2013.795698

Creswell, J. W. & Clark, V. L. P. (2007). Designing and conducting mixed methods research. Thousand Oaks, CA, U.S.A.: Sage Publications.

Díaz, S., Demissew, S., Joly, C., Lonsdale, W. M. & Larigauderie, A. (2015). A Rosetta stone for nature’s benefits to people. PLOS Biology 13 (1), e1002040. doi:10.1371/journal.pbio.1002040

Echegaray, F. & Afonso, M. H. F. (2014). Respostas às mudanças climáticas: inovação tecnológica ou mudança de comportamento individual? Estudos Avançados 28 (82), 155–174. doi:10.1590/s0103-40142014000300010

Ferreira, S., Morais, A. M. & Neves, I. P. (2011). Science curricula design: analysis of authors’ ideological and pedagogical principles. International Studies in Sociology of Education 21 (2), 137–159. doi:10.1080/09620214.2011.575102

Johnson, R. B. & Onwuegbuzie, A. J. (2004). Mixed methods research: a research paradigm whose time has come. Educational Researcher 33 (7), 14–26. doi:10.3102/0013189x033007014

Lude, A. (2010). The spirit of teaching ESD — biodiversity in educational projects. Em K. Ulbrich, J. Settele & F. F. Benedict (Ed.), Biodiversity in education for sustainable development: reflection on school-research cooperation (pp. 17–30). Sofia, Bulgaria: Pensoft Publishers.

Mace, G. M. (2014). Whose conservation? Science 345 (6204), 1558–1560. doi:10.1126/science.1254704

Mainardes, J. & Stremel, S. (2010). A teoria de Basil Bernstein e algumas de suas contribuições para as pesquisas sobre políticas educacionais e curriculares. Revista Teias 11 (22), 31–54. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistateias/article/view/24114

Marandino, M. (2001). O conhecimento biológico nas exposições de museus de ciências: análise do processo de construção do discurso expositivo (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brazil).

Marandino, M. (2016). The expositive discourse as pedagogical discourse: studying recontextualization in the production of a science museum exhibition. Cultural Studies of Science Education 11 (2), 481–514. doi:10.1007/s11422-014-9625-9

Marandino, M., Campos, N. F., Caffagni, C. W. d. A., Leporo, N., Maia, R. & Oliveira, A. D. (2012). A percepção de biodiversidade em visitantes de museus: um estudo no Brasil e na Dinamarca antes da visita. Tempo Brasileiro 188, 97–112.

Marandino, M. & Diaz Rocha, P. E. (2011). La biodiversidad en exposiciones inmersivas de museos de ciencias: implicaciones para educación en museos. Enseñanza de las Ciencias. Revista de investigación y experiencias didácticas 29 (2), 221–236. doi:10.5565/rev/ec/v29n2.499

Martins, L. C. (2011). A constituição da educação em museus: o funcionamento do dispositivo pedagógico museal por meio de um estudo comparativo entre museus de artes plásticas, ciências humanas e ciência e tecnologia (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brazil).

Morais, A. M. (1991). Influência do nível de exigência conceptual dos professores no sucesso dos alunos em Ciências: um estudo sociológico. Revista de Educação 2 (1), 62–80.

Morais, A. M. (2005). Bernstein: sociologia para a educação. Em A. Teodoro & C. Torres (Ed.), Educação crítica & utopia — perspectivas para o século XXI. Lisboa, Portugal: Edições Afrontamento.

Morais, A. M., Neves, I. P. & Ferreira, S. (2014). Currículos, manuais escolares e práticas pedagógicas: estudo de processos de estabilidade e mudança no sistema educativo. Lisboa, Portugal: Edições Sílabo.

Neves, I. P., Morais, A. M., Medeiros, A. & Peneda, D. (2000). Os discursos instrucional e regulador em programas de ciências: estudo comparativo de duas reformas. Revista Portuguesa de Educação 13 (1), 209–245. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37413110

Pascual, U., Balvanera, P., Díaz, S., Pataki, G., Roth, E., Stenseke, M., … Yagi, N. (2017). Valuing nature’s contributions to people: the IPBES approach. Current Opinion in Environmental Sustainability 26–27, 7–16. doi:10.1016/j.cosust.2016.12.006

Pedretti, E. (2012). The medium is the message: unravelling visitor’s views of Body Worlds and Story of the Heart. Em E. Davidsson & A. Jakobsson (Ed.), Understanding interactions at science centers and museums: approaching sociocultural perspectives (pp. 45–61). Rotterdam, The Netherlands: Sense Publishers.

Porcedda, A., Landry, J. & Lepage, L. (2006). Musées de sciences et développement durable: militantisme ou changement de paradigme? Em A. Emond (Ed.), L’éducation muséale vue du Canada, des Etats-Unis et d’Europe: recherché sur les programmes et les expositions (pp. 279–292). Montreal, Canada: Editions Multimondes.

Silva, S. D. & Loureiro, J. M. M. (2015). Processos curatoriais dos espaços museológicos de história natural como elaboradores de ‘formações discursivas’ acerca das verdades da ciência e da ‘ideia de nação’. Revista Internacional de Ciencia y Sociedad 2, 37–46.

Souza, M. P. C. (2017). O discurso expositivo sobre biodiversidade e conservação em exposições de imersão (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brazil).

UEBT. Union for Ethical BioTrade (2016). Biodiversity barometer. Recuperado março2018, de http://www.biodiversitybarometer.org/biodiversity-barometer-reports/

UEBT. Union for Ethical BioTrade (2017). Biodiversity barometer. Recuperado março2018, de http://www.biodiversitybarometer.org/biodiversity-barometer-reports/

Young, M. (2007). Para que servem as escolas? Educação & Sociedade 28 (101), 1287–1302.

Autores

Maria Paula Correia de Souza é doutora em Ensino de Ciências e Matemática pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Biologia pela USP. É sócia proprietária da empresa Percebe pesquisa, consultoria e treinamento educacional (percebeeduca.com.br). Tem experiência em Ensino de Ciências e Educação em Museus. Suas principais áreas de atuação estão relacionadas à educação em biodiversidade, educação em museus de ciências, avaliação de exposições e ações educativas.
E-mail: mpaula@percebeeduca.com.br

Martha Marandino é professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Graduada em Biologia, mestre em Educação e doutora em Educação. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Não Formal e Divulgação Científica/GEENF (www.geenf.fe.usp.br). Tem experiência em ensino e pesquisa nas áreas de Ensino de Ciências e Educação em Museus. Os interesses de investigação incluem a divulgação da ciência e particularmente da biologia em contextos extra-escolares como museus, centros de ciência, jardins zoológicos, aquários e jardins botânicos.
E-mail: marmaran@usp.br

Notas

1Segundo o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), uma unidade de conservação (UC) é um “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”. ICMBio. https://www.icmbio.gov.br/flonaipanema/18-uncategorised/10-o-que-e-uma-unidade-de-conservacao.html acesso em out de 2023.