Este trabalho relaciona ciência e jornalismo, dois campos que tiveram sua relevância social posta em evidência durante a pandemia de Covid-19. Considera que o coronavírus trouxe insegurança social e aprofundou incertezas nas ciências biomédicas [ Alves, Pimenta & Antunes, 2021 ], que a desinformação relacionada ao universo científico tem sido uma das grandes preocupações mundiais [ de Oliveira, 2020 ] e que a popularização das descobertas tecnocientíficas em relação ao vírus — em especial, as vacinas — convive com fortes posicionamentos anticiência [ Carvalho & de Lima Dias, 2021 ], formando um cenário gerador de disputas discursivas em torno dos sentidos sobre a realidade social pandêmica. Além disso, leva em conta estudos que vêm apontando confrontos em torno da hegemonia do conhecimento socialmente aceito como verdade, que evidenciam estar em curso um processo de crise das instituições epistêmicas — balizadoras da sociedade, cuja função social originalmente estabelecida se consolidou em torno da produção e disseminação de conhecimento, que produzem evidências para a tomada de decisões e se auto instituem como promotoras da verdade [de Oliveira, 2020 ].

A análise insere-se num contexto marcado por descrédito a instituições que, historicamente, detinham a exclusividade da produção e difusão de informações e veem hoje sua credibilidade sendo questionada, perseguida e ameaçada. A criação e propagação de conteúdos sem embasamento na factualidade, embora não seja uma prática recente, é impulsionada em larga escala na internet, gerando um fenômeno que atravessa diversas esferas sociais, e a situação se complica ao passo que “o jornalismo — uma instituição moderna fundada em princípios anglo-americanos de verdade e objetividade — sofre da mesma crise de credibilidade enfrentada pela ciência” [ de Oliveira, 2022 , p. 167, tradução nossa]. 1 A conjuntura marcada por disputas pela visibilidade dos discursos socialmente aceitos alerta para a construção de um “ecossistema de desinformação” [ Soares, Viegas, Sudbrack, Recuero & Hüttner, 2019 , p. 3], complexo e transversal, que se constitui como um problema para o debate público e uma ameaça à democracia.

Para estudar o período, situamos os discursos jornalístico e científico como construtores dos sentidos sociais que emergiram nesse cenário de instabilidades. Levamos em conta que, para os cientistas, o grande desafio foi fazer ciência com a pandemia avançando por diversos países, e aos jornalistas, concomitantemente, coube o compromisso de relatar, com responsabilidade e parcimônia, as controvérsias e dúvidas científicas, a fim de enfatizar a dinâmica da ciência sem gerar mais ansiedade no público [ Madacki, 2021 ]. Além disso, consideramos que a pandemia pode ser encarada como uma crise potencializada pelo fenômeno das tecnociências, ao passo que, “no combate ao novo coronavírus, evidencia-se um dilema complexo que coloca a saúde pública em choque com uma produção sociotécnica pragmática e utilitária” [ Chaves, 2021 , p. 42], ao mesmo tempo em que o negacionismo e as teorias da conspiração atuam como arma política para o desmonte científico e a perseguição a pesquisadores [Chaves, 2021 ; de Oliveira, 2022 ].

Com o objetivo de identificar os sentidos presentes nos discursos sobre ciência em torno da pandemia que circularam no Café da Manhã podcast produzido no Brasil em uma parceria entre a Folha de S. Paulo e o Spotify —, selecionamos para análise seis edições de janeiro de 2021 que têm as vacinas como assunto principal. A definição do corpus ancora-se em pesquisas que apontam que, durante o isolamento social, o consumo de podcast aumentou e as plataformas de streaming (que reproduzem conteúdo online sem a necessidade de download ) ganharam destaque. 2 O Café da Manhã , veiculado de segunda a sexta-feira, propõe-se a noticiar “o fundamental sobre os assuntos do momento no Brasil e no mundo” [ Café da Manhã, 2022 ] e foi um dos podcasts mais ouvidos no país em 2021. 3 Metodologicamente, utilizamos a Análise de Discurso Francesa (AD) como método de pesquisa de textos jornalísticos, extraindo dos áudios sequências discursivas (SDs) com relevante potencial para analisar o tema; observando a reiteração de dizeres dessas SDs, formamos as famílias parafrásticas (FPs) e, a partir delas, conseguimos mapear as formações discursivas (FDs) que determinam os núcleos de sentido predominantes nos discursos do nosso corpus .

1 Pandemia e desinformação

A eclosão de um vírus letal impôs um desafio sanitário em nível global a partir de 2020. Com seus primeiros casos registrados na China, em dezembro de 2019, o novo coronavírus já vitimou mais de 6,3 milhões de pessoas no mundo. 4 O meio ambiente e a vida social, que inclui a política, a economia e a cultura, sofreram um “abalo planetário” provocado pela pandemia, que “desorganizou nossas pequenas certezas e desestruturou comportamentos sociais” [ da Silva, da Silva & da Silva Gurgel Dutra, 2020 , pp. 11 e 12]. Medidas de contenção de contágio foram adotadas de formas diferentes por diversos países, não havendo aprovação unânime dos protocolos sanitários; com isso, além das mortes e do sofrimento, a Covid-19 gerou insegurança social e aprofundou questionamentos científicos na área biomédica, configurando-se como a pandemia que mais impactou a humanidade desde a gripe espanhola [ Alves et al., 2021 ]. Em meio à falta de conhecimento e de informações desencontradas mesmo entre estudiosos, o isolamento social apareceu como uma das poucas alternativas para evitar o alastramento do vírus e a “corrida” pelo desenvolvimento de uma vacina capaz de conter a propagação da doença tornou-se uma demanda científica mundial.

No Brasil, além dos reflexos socioeconômicos decorrentes desse problema global de saúde pública que já levou à morte 675 mil pessoas, 5 enfrenta-se uma crise institucional e política permeada por acontecimentos que foram enfraquecendo as instituições tradicionais que sustentam a democracia. Iniciativas de combate ao vírus deparam-se com “informações falsas compartilhadas inclusive em discursos de lideranças políticas”, além de ataques virtuais contra jornalistas científicos e divulgadores de ciência que se opõem às declarações do presidente Jair Bolsonaro [ de Oliveira, 2020 , pp. 3, 14], marcado como uma voz intransigente ao proferir manifestações contrárias às recomendações médicas e evidências científicas [ Neves & Sobral, 2021 , p. 67]. Disseminou-se, assim, um quadro nacional de desinformação — termo aqui trazido para o campo científico, entendido como um elemento difícil de conceituar, derivado de práticas sociais enquanto parte de um fenômeno cultural amplo no qual os sentidos sobre a informação são disputados para interesses próprios, relacionado à diminuição da confiança que a sociedade deposita nas informações produzidas e divulgadas pelas instituições epistêmicas, como as escolas, universidades, institutos de pesquisa e o próprio jornalismo [de Oliveira, 2020 ]. 6

Enquanto países como Nova Zelândia, Chile, Israel, Austrália e Reino Unido conseguiram gerir a situação com certa eficácia, por meio de políticas rígidas de isolamento e agilidade na imunização em massa [ Cappi, 2021 ], no Brasil, a “falta de coordenação em nível nacional”, a “desarticulação interna” e a “dependência tecnológica”, diante de um “quadro governamental abertamente negacionista”, fizeram com que a pandemia gerasse uma “crise federativa” [ Neves & Sobral, 2021 , pp. 70, 71 e 72]. O negacionismo, nesta conjuntura, mostra-se como uma “arma política para o desmonte da ciência, das instituições, do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) e de perseguição a pesquisadoras(es)” [ Chaves, 2021 , p. 46]. Diante das instabilidades, a divulgação científica busca evidenciar-se como ação primordial do combate à desinformação em torno da Covid-19 e também de salvaguarda da ciência [Chaves, 2021 ].

2 Jornalismo e ciência em crise epistêmica

Pesquisas atuais alegam haver, no Brasil e em outras partes do mundo, uma crise das instituições epistêmicas, que, conforme estudos de de Oliveira [ 2020 ], constitui-se a partir de “um conjunto de crenças consolidadas que vão de encontro com valores estabelecidos em torno das instituições científicas como espaço de produção de informações confiáveis e evidências para tomada de decisão” [de Oliveira, 2020 , p. 3]. Para a pesquisadora brasileira, que define o cenário atual como um momento em que o jornalismo e a ciência são desacreditados pela sociedade, em um processo político e ideológico voltado para o ceticismo sobre essas organizações, “paradigmas de comunicação estão sendo desafiados” e ganham força movimentos conspiratórios que versam sobre temas relacionados à antivacinação, terraplanismos, criacionismos e nova ordem mundial [ de Oliveira, 2022 , p. 165]. “Hoje, as comunidades epistêmicas — incluindo a comunidade científica — encontram-se no olho do furacão” [p. 166, tradução nossa], 7 avalia, indicando que os principais propulsores do cenário são discursos que ganham voz nos espaços digitais, nos quais florescem fenômenos que entrelaçam política, ciência e religião, aliados a outros movimentos que atacam a legitimidade do trabalho científico e contestam a ciência moderna. Esse panorama, acrescido da auto legitimação das instituições epistêmicas como promotoras de uma verdade absoluta que deslegitima tudo aquilo que não vai ao seu encontro [de Oliveira, 2020 ], estimula a perda da confiança popular sobre o conhecimento produzido por universidades e institutos de pesquisa.

Esse descrédito às instituições produtoras e divulgadoras de conhecimento é estreitamente vinculado à desinformação, que se intensificou com a pandemia de Covid-19 [ de Oliveira, 2020 ]. Em uma publicação recente, de Oliveira [ 2022 ] analisa a disseminação de conteúdos sobre ciência nas mídias sociais e demonstra que a circulação de mensagens sem embasamento científico é um dos maiores desafios dos ecossistemas de informação contemporâneos. Sobre o complexo momento atual, a estudiosa afirma não se tratar apenas de falta de informações ou fake news , mas de concepções sociais que contrariam valores das instituições democráticas:

Princípios de neutralidade, crença na objetividade, ética pública, compromisso com a “verdade” pelo bem da sociedade e adoção de normas, formatos e métodos específicos regem tanto o “paradigma da ciência” quanto o “paradigma do jornalismo”, levando a uma supervalorização da razão e garantindo que estas instituições epistêmicas sejam porta-vozes da sociedade, acima de quaisquer tipos de disputas políticas, o que não se consolida na prática [de Oliveira, 2020 , p. 12].

Outros estudos caminham na mesma direção, indicando que a conjuntura sociopolítica brasileira agravou a problemática em nível nacional. Santos [ 2021 ], em uma pesquisa sobre fontes de informação que aparecem no Twitter , em conteúdos sobre o presidente Jair Bolsonaro, trata a crise epistêmica enfrentada pelo jornalismo como uma das características marcantes do nosso tempo e que ganha ainda mais centralidade no debate político. De acordo com ela, os ataques a tradicionais instituições democráticas, como as universidades, a imprensa e as instituições políticas, são correntes no Brasil, evidenciados por discursos terraplanistas e negacionistas, e foram alavancados durante a pandemia de Covid-19. A respeito desse cenário de crise, Santos [ 2021 ] orienta que, mais do que compreender o papel de cada mídia, torna-se essencial avaliar quais mídias são reconhecidas e legitimadas como mediadoras de informação por diferentes grupos sociais para, em seguida, explorar como essa mediação é feita, já que os parâmetros jornalísticos já não são mais os únicos no horizonte informativo. Uma pesquisa de da Silva Gomes e Dourado [ 2019 ], que analisa a campanha presidencial brasileira de 2018, corrobora essa discussão ao inferir que a crise epistêmica gira em torno da política e é intencionalmente produzida pela ascensão mundial de um movimento conservador de direita, que faz uso extensivo de fake news em benefício próprio, para arbitrar sobre o conhecimento socialmente aceito sobre os fatos, criando uma “crise epistêmica politicamente induzida” [da Silva Gomes & Dourado, 2019 , p. 44].

A situação, no entanto, não prejudica apenas o cenário midiático brasileiro. Steen Steensen [ 2019 ], professor de Jornalismo na Noruega, afirma que “o jornalismo em muitas culturas está hoje em crise epistêmica” e avalia que os principais impulsionadores são os discursos de desinformação e a datificação geral da sociedade, que, combinados, tornam dúbias as formas como o campo avalia fontes e informações em sua produção de conhecimento [2019, p. 185, tradução nossa]. 8 Nesse viés, o problema da desinformação não está relacionado apenas às alegações de “ fake news ” e “fatos alternativos” apresentados por políticos e outros no poder, mas leva em conta também avanços específicos na tecnologia de “manipulação de mídia” — como gravações de áudio e vídeo —, que alteram noções previamente estabelecidas do que é uma fonte confiável de informação para o campo jornalístico [Steensen, 2019 , p. 186, tradução nossa]. 9

3 Corrida pela vacina e tecnociências

Nesta reflexão envolvendo crise das instituições epistêmicas, pandemia, desenvolvimento de novas tecnologias e divulgação científica, mostra-se relevante a discussão sobre o papel das tecnociências, que impulsionaram a “corrida pela vacina” tendo impacto no modo como se deu a produção e distribuição dos imunizantes ao redor do mundo. Pelo viés de Chaves [ 2021 ], entendemos que o combate ao vírus traçou, na pandemia, uma segunda batalha: entre as grandes corporações farmacêuticas. Esse pressuposto é compartilhado também por Carvalho e de Lima Dias [ 2021 ] ao apontarem que o debate contemporâneo sobre as possibilidades éticas e políticas da pesquisa em tecnologia e sociedade ganhou um novo impulso no contexto da pandemia, pelo fato de que a competição científica pela produção de vacinas capazes de reprimir a doença esteve fortemente permeada por interesses mercadológicos.

Reportagens publicadas em 2021 chamam a atenção para o fato de que, enquanto o isolamento prejudicava atividades econômicas no mundo todo, algumas empresas aumentaram seus ganhos de forma exponencial. Um texto da OXFAM Brasil 10 afirma que “pelo menos nove pessoas se tornaram bilionárias desde que a pandemia de Covid-19 começou em 2020, graças aos excessivos lucros que as empresas farmacêuticas estão tendo com os monopólios das vacinas”. Sobre o assunto, uma matéria da BBC News Brasil 11 relata que governos assinaram contratos com empresas que desenvolveram vacinas em “tempo recorde”, enquanto que informações desses acordos ficaram “ocultas do público” devido a “cláusulas de confidencialidade estritas”. As relações permeadas por interesses e competitividade se evidenciam ao passo que, em meio aos poderes e jogos ideológicos, a política dos países mais ricos buscou garantir na pandemia, prioritariamente, o controle dos insumos e a proteção de suas nações [ da Silva et al., 2020 ].

Para aprofundar o tema, apropriamo-nos da definição conceitual proposta por Echeverría [ 2003 ], para quem as tecnociências são um tipo particular de ciência que se distingue pela mediação da tecnologia impregnada por valores econômicos e empresariais que integram e têm peso considerável no núcleo axiológico da investigação. O filósofo considera que a integração entre a atividade científica e a tecnológica é um dos indicadores da existência de tecnociência [Echeverría, 2003 ] e argumenta que a emergência da tecnologia vem afetando, além da investigação, a gestão, aplicação, avaliação, desenvolvimento e difusão do conhecimento científico — fato que nos ajuda a pensar os polêmicos reflexos das incertezas científicas no período pandêmico. Apesar de afirmar que as pesquisas seguem mantendo seus valores epistêmicos, Echeverría aponta que as tecnociências incorporam necessidades técnicas (utilidade, eficiência, eficácia, funcionalidade, aplicabilidade, etc.), com propósitos que atendem a finalidades predeterminadas:

A tecnociência se caracteriza antes de tudo pela emergência, consolidação e desenvolvimento estável de um sistema científico-tecnológico que dá lugar a um novo modo de produção de conhecimento. [ …] se caracteriza pela instrumentalização do conhecimento científico-tecnológico. O avanço no conhecimento deixa de ser um fim em si mesmo para se converter em um meio para outros fins [Echeverría, 2003 , p. 15, tradução nossa]. 12

Premebida, Neves e Almeida [ 2011 ] trazem contribuições a essa discussão ao afirmarem que o contexto sociopolítico influencia, constantemente, a prática científica. De acordo com os pesquisadores, “não há constatação empírica de cientistas buscando uma verdade unicamente pelo desejo de conhecê-la, tendo em vista o nível de influências e complexidade da ciência e tecnologias atuais” [p. 34]. No entanto, mesmo estimulada por interesses que não sejam exclusivamente do campo do conhecimento, a ciência “avança, resolve problemas, justamente por ajustar interesses sociais e cognitivos”, concluem [p. 34].

No contexto brasileiro, pesquisas relacionam as tecnociências com a pandemia demonstrando que a resposta do país à crise causada pelo coronavírus tem raízes na histórica escassez de incentivo financeiro à produção científica. de Oliveira Teixeira, Klein e Nishida [ 2021 , p. 64] argumentam que “a pandemia destacou a dimensão normativa das tecnociências tanto em relação à produção da vida ordinária, quanto em relação a sua participação no desenho de políticas públicas”; e que, no Brasil, a área enfrenta o anticientificismo associado ao desfinanciamento das tecnociências.

4 Sentidos emergentes dos discursos sobre ciência no Café da Manhã

Diante das particularidades deste momento histórico, percebemos a relevância de se investigar como se constituíram os sentidos sobre ciência predominantes na realidade pandêmica. Para isso, levamos em conta que o jornalismo tem o papel de promover e fazer circular discussões públicas acerca de assuntos do cotidiano, contribuindo para a construção dos significados que afloram na sociedade, o que acontece, principalmente, por meio dos discursos postos em cena. Entendemos, também, que esses discursos se firmam em maneiras de dizer determinadas pelo contexto sócio-histórico em que se inserem, sendo construtores desse contexto, em um processo de interação mútua permeado por ideologias que determinam a produção e a reprodução de sentidos sociais [ Pinto, 2002 ]. Não há como observar o funcionamento de qualquer discurso sem considerar que, conforme sugere Benetti [ 2016 ], os sujeitos envolvidos se movimentam e ocupam posições que lhes são anteriores.

Na rotina do jornalismo, estratégias costumam ser acionadas para legitimar discursos, servindo para confirmar acontecimentos e verificar informações. Conforme Charaudeau [ 2013 ] a comunicação opera por meio de escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, processo que denomina de estratégias discursivas, que podem se manifestar por meio de testemunhos, pesquisas, imagens, etc. Soares et al. [ 2019 ] apontam que, quando mais de uma narrativa é construída em torno de um tema, emanam disputas discursivas, fazendo essas narrativas serem confrontadas; relacionadas a essas disputas ainda estão as estratégias discursivas, utilizadas para legitimar uma determinada posição social.

Os dizeres acionados pelo jornalismo devem ser encarados como espaços de circulação e produção de sentidos. Benetti [ 2007 ] define o discurso jornalístico como: dialógico (surge a partir de influências de outros sujeitos e discursos anteriores); polifônico (por ele circulam diversas vozes); opaco (não-transparente, pleno de possibilidades de interpretação); ao mesmo tempo efeito e produtor de sentidos (produzido por sujeitos que dizem e também pelos que ouvem, ou seja, pela interação); elaborado segundo condições de produção e rotinas particulares (constrangimentos impostos no sistema organizacional, narrativas que orientam o que jornalistas escrevem, valores-notícia, etc).

Para analisar o funcionamento dos discursos sobre ciência no podcast Café da Manhã , da Folha de S. Paulo , ao relatar o episódio da vacina contra a Covid-19, trabalhamos com a perspectiva teórico-metodológica da AD proposta por Benetti [ 2007 ], que direciona essa metodologia ao estudo do jornalismo. Constituímos nosso corpus extraindo do objeto, em um primeiro momento, edições veiculadas no mês de janeiro de 2021, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso emergencial da Coronavac, vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac, que possibilitou o início da imunização contra a Covid-19 no Brasil. Deste universo contendo 20 edições, selecionamos para análise apenas os episódios com a palavra “vacina” no título, delimitando nosso corpus nestas seis edições formadas por áudios de aproximadamente 30 minutos cada um: 1) A vacina contra Covid-19 na rede privada ; 2) Covid-19: o que falta para uma vacina nacional ; 3) Temos vacina: por que tomá-la? ; 4) Os desafios da produção da vacina no Brasil ; 5) A diplomacia brasileira em tempos de vacina ; 6) A discussão sobre adiar a 2 a dose da vacina .

Contabilizando-se os seis episódios, identificamos um total de 23 vozes nomeadas nos podcasts , entre jornalistas e fontes, — sendo quatro jornalistas apresentadores (que revezam-se na apresentação dos podcasts ), nove especialistas (que são questionados, de modo geral, sobre questões técnicas relacionadas à vacinação), seis repórteres (que ora comentam informações obtidas com suas fontes especialistas, ora emitem avaliações pessoais sobre o processo de vacinação), três políticos (ligados a cargos governamentais) e uma fonte popular (que foi a primeira pessoa vacinada contra a Covid-19 no Brasil) — além de incontáveis vozes não nomeadas (gravações externas, inseridas na edição dos episódios, geralmente manchetes sobre o assunto em pauta transmitidas por outros veículos de comunicação).

Seguindo orientações de Benetti [ 2016 ], no que concerne à análise dos sentidos, realizamos a aplicação metodológica extraindo de nosso corpus , primeiramente, 80 sequências discursivas (SDs) — fragmentos significativos de textos relacionados ao tema e ao problema de pesquisa — que demonstraram potencial para inferir sobre nosso problema de pesquisa. Pela análise minuciosa dessas SDs, formamos 13 famílias parafrásticas (FPs), constituídas pela reiteração de palavras, ideias e assuntos presentes nos discursos evocados pelo podcast . Analisando os núcleos de sentido comuns entre uma FP e outra, chegamos a três formações discursivas (FDs) — posições dominantes que emergem dos discursos e representam diferentes espaços de dizer em torno do momento pandêmico. A partir disso, tratamos de tensionar o processo de produção de sentidos e as regularidades dos discursos sobre ciência emergentes na pandemia. No quadro abaixo, apresentamos as FPs que originaram cada uma das FDs. Em seguida, trazemos seções específicas com exemplos e detalhamentos.

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Tabela 1 : Núcleos de sentido mapeados nos discursos. Fonte: próprio autor.

4.1 FD1) O Governo Federal foi omisso e negligente

A Formação Discursiva 1 foi a que recebeu maiores espaços de dizer nos áudios analisados, compreendendo 46% das SDs identificadas em nosso corpus . Além de aglutinar 37 SDs, esta FD também é formada por seis das 13 FPs, sendo constituída por assuntos diversos que têm em comum, como ideia central, o sentido de que o Governo Federal foi omisso e negligente nas ações de enfrentamento à pandemia no Brasil. Os dizeres argumentam que houve falta de planejamento e de estratégia governamental para conter a propagação da doença, demonstram que o país não alimentava bons relacionamentos com o mercado externo e apontam que cortes orçamentários e precários investimentos em ciência e tecnologia nos últimos anos agravaram a crise sanitária em nível nacional. Além disso, vozes, tanto de cientistas quanto de jornalistas, reforçam nos episódios o papel da vacinação como a única alternativa viável para conter a disseminação do coronavírus, tratando-a como uma “luz no fim do túnel” [ Café da Manhã, 2021b ], e destacam que representantes governamentais, especialmente Jair Bolsonaro, disseminam posicionamentos contrários à imunização e à pesquisa científica, de modo geral. Em suma, nos ditos que constituem esta FD, é reforçada a posição de que o Governo não encarou a pandemia como um complexo problema de saúde pública, negando a real situação a fim de evitar desgaste econômico. As seguintes SDs exemplificam isso:

Todos [os cientistas] dão um jeito de incluir na conversa alguma reclamação com relação a orçamento, a investimento em ciência . Alguns deles mais desesperados , porque o país não tem autonomia para fazer muita coisa por falta de dinheiro , mesmo tendo profissionais que estão entre os melhores do mundo [ Café da Manhã, 2021d ].

O problema todo foi a opção feita pelo Governo Federal desde o começo de minimizar a pandemia . [ …] O Brasil não estava preparado porque o Governo Federal tinha uma orientação negacionista , que era contra a ideia de que a pandemia era um grande problema de saúde pública. Era mais uma questão econômica , “nós temos que deixar o comércio aberto” [ Café da Manhã, 2021e ].

Conseguimos o feito único de estarmos completamente isolados da geopolítica internacional . Nós temos uma relação péssima com a China, uma relação inexistente com os Estados Unidos, uma relação de conflito permanente com a Europa, uma relação inexistente com países africanos. [ …] O Brasil tem um problema estrutural de abastecimento de vacina devido à política externa implementada pelo Governo Bolsonaro [ Café da Manhã, 2021a ].

4.2 FD2) A vacinação é regida pela economia de mercado

Nesta formação discursiva, que contém cinco FPs e 25% das SDs, percebemos o entroncamento dos discursos com a lógica econômica mundial. As vozes inferem que o Brasil precisa ter soberania nacional na produção de vacinas para não depender exclusivamente de outros países; para isso, problematizam a dependência de tecnologias e insumos estrangeiros para a produção dos imunizantes e afirmam que os estudos na área das ciências biomédicas deveriam estar mais alinhados aos interesses da iniciativa privada, a fim de angariar recursos que possibilitem o desenvolvimento de pesquisas de forma mais rápida e eficaz. Além disso, demonstram ser a produção científica, em nível mundial, extremamente dependente do setor econômico, já que os insumos, as vacinas e o conhecimento tecnocientífico, em si, são apontados como moedas de troca que impulsionam a competitividade entre países. Nesta FD, ainda que a influência da economia nas questões de saúde pública seja problematizada em diversos momentos, prevalecem enunciados que definem as vacinas como um produto comercializável altamente dependente das dinâmicas do mercado internacional. Vejamos exemplos:

Um problema que atrapalha o andamento dessas pesquisas no Brasil também tem a ver com a falta de tradição no país de juntar a iniciativa privada com a pesquisa acadêmica . [ …] No Brasil, das 16 propostas que o Ministério mapeou, duas delas contam com iniciativa privada de alguma forma. Isso é muito pouco . É muito menos do que a gente vê lá fora [ Café da Manhã, 2021d ].

Se tem dinheiro, a pesquisa anda. Se não tem dinheiro, a pesquisa não anda [Café da Manhã, 2021d ].

Insumo farmacêutico é um produto estratégico de governos no mundo todo [ Café da Manhã, 2021e ].

É economia de mercado, né… o preço da vacina vai aumentando a não ser que se faça uma negociação de uma compra grande e aí se discute o preço, se discute a [ …] transferência de tecnologia. [ …] Se o setor privado no mundo inteiro começar a procurar vacina, obviamente o estoque hoje é ainda pequeno e pode acarretar um aumento de preço e pode acarretar também um descompasso nas populações prioritárias [ Café da Manhã, 2021c ].

4.3 FD3) Os benefícios das vacinas superam seus riscos

Na Formação Discursiva 3, chama a atenção o fato de mapearmos o menor número de FPs e, ao mesmo tempo, um número relevante de SDs. Foram identificadas 23 sequências com reiteração de ideias muito parecidas que giram em torno de apenas duas famílias parafrásticas: uma que demonstra a existência de incertezas sobre as vacinas que estavam, naquele momento, recebendo aprovação emergencial ou eram candidatas a tal; outra que cita “riscos” existentes na vacinação, em decorrência da incompletude de dados, poucos testes clínicos, estudos sem revisão por pares, efeitos colaterais, entre outros pontos, mas argumenta que a emergência em saúde pública justifica a urgência na aplicação dos imunizantes. Dados apresentados pelo podcast mostram que, em janeiro de 2021, girava em torno de 20% o número de brasileiros que ainda recusavam a vacinação contra o coronavírus 13 — é citado que a vacina, naquele momento, gerava “insegurança para a população” e que havia muitas “diferenças de opiniões” a respeito do processo de imunização no país, o que se relacionava com a perda da “credibilidade” sobre as vacinas. Apesar de darem espaço para que essas ressalvas sobre a segurança das vacinas fossem apresentadas — e reiteradas em diversos dizeres de jornalistas e especialistas —, os episódios, no entanto, desenvolvem apenas brevemente a questão. Ainda que se mostre evidente a existência de “dúvidas” sobre a vacinação que, no momento, começava a avançar no país, nenhuma voz é evocada para detalhar quais seriam os “riscos”, “críticas”, “incertezas” e “inseguranças” citadas em torno do assunto. Os únicos dizeres que surgem de forma a questionar o processo imunizatório vêm de declarações exacerbadas do presidente Jair Bolsonaro e são imediatamente desacreditadas por jornalistas e especialistas que rebatem as alegações trazendo à tona informações técnicas que reforçam a importância histórica da imunização no desenvolvimento das civilizações. Para entender melhor, vamos aos exemplos:

São vacinas incompletas . Em nenhum lugar do mundo existe uma vacina perfeita contra a Covid-19. Todas as vacinas estão sendo usadas de forma emergencial, ou seja, [ …] sujeitas a novidades acerca de sua eficácia, seus riscos e seguranças [ Café da Manhã, 2021e ].

Apesar de ela [a vacina Covaxin] já ter sido aprovada pelas autoridades sanitárias indianas para o uso emergencial, há muitas críticas de especialistas independentes [ …]. Então, especialmente, sobre eficácia e segurança, não se tem informação ainda [ Café da Manhã, 2021c ].

Isso para a população é algo que gera insegurança e perde um pouco a credibilidade e a adesão à vacina [ …] e que ficam essas diferenças de opiniões, o que não é algo desejável neste momento . Neste momento, a gente tem que estar passando informações claras [ …] e ganhando a adesão da população [ Café da Manhã, 2021b ].

Nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral ! Se você virar um jacaré , é problema de você, pô! [ Café da Manhã, 2021f ].

Guiados pela ciência e pelos dados, a equipe de servidores da Anvisa concluiu que os benefícios conhecidos e potenciais dessas vacinas superam seus riscos [Café da Manhã, 2021f ].

5 Considerações finais

Por meio da aplicação teórico-metodológica da Análise de Discurso Francesa, nesta pesquisa, pudemos verificar que os sentidos mapeados nos discursos sobre ciência do podcast Café da Manhã , em episódios de janeiro de 2021, abarcam três formações discursivas (FDs) majoritárias. Ao Governo Federal, apontado como omisso e negligente (FD1), recai a responsabilidade pela desarticulação interna, desfinanciamento das ciências e falta de apoio do mercado externo para o enfrentamento da pandemia. Os dizeres sobre avanços científicos para conter a transmissão do coronavírus relacionam a produção e distribuição das vacinas à lógica econômica (FD2). Além disso, para incentivar a adesão dos ouvintes à vacinação, a narrativa trata de demonstrar que os benefícios superam possíveis riscos da imunização coletiva (FD3).

Tensionando esses núcleos de sentido, observamos que os discursos acionados pelo Café da Manhã englobam três esferas — política, economia e saúde — que se mostram estreitamente relacionadas à dinâmica tecnocientífica em torno da produção de vacinas contra o coronavírus. As vozes acionadas pelo podcast analisam a gestão da pandemia no Brasil, avaliando os dilemas envolvidos na negociação econômica de um tema de urgência em saúde pública, e destacam os esforços da ciência brasileira para viabilizar o desenvolvimento de vacinas seguras e eficazes mediante a negligência do Governo Federal — apontada tanto devido à falta de interesse na negociação com as farmacêuticas, quanto pela posição abertamente negacionista em relação à pandemia e rejeição à ciência em seus diversos aspectos. Além disso, ao mesmo tempo em que comentam a importância de possíveis parcerias público-privadas para agilizar a fabricação das vacinas, nos áudios, cientistas e jornalistas defendem a importância da vacinação pública, da universalidade, reforçando que “ o Brasil é referência global de imunização feita pelo setor público ” [ Café da Manhã, 2021f ] e que “ a pandemia escancarou a necessidade de investimentos em ciência ” no país [ Café da Manhã, 2021d ]. Nos episódios, no entanto, a dinâmica tecnocientífica envolvendo a produção e distribuição das vacinas não é abarcada em toda sua complexidade. Nos áudios analisados, mesmo havendo uma problematização das tecnociências, na medida em que são demonstradas — e, inclusive, criticadas — as interferências econômicas na resolução de um problema global de saúde pública, são apresentados apenas de forma vaga e superficial questionamentos relacionados às vacinas e ao complexo fenômeno tecnocientífico que envolve a descoberta e a produção desses insumos farmacológicos em larga escala e tempo reduzido.

Os próprios áudios demonstram que a visão sobre o assunto não é unânime nem entre a sociedade civil nem entre pesquisadores, pois, além de comentar que havia quase um quinto da população ainda rejeitando a imunização naquele momento, 14 os episódios apontam que especialistas e institutos de pesquisa cobravam, naquele período, dados mais concretos sobre as evidências científicas: “O que os técnicos [da Anvisa] falaram foi que o Butantan não apresentou todos os dados previstos sobre a presença de anticorpos nas pessoas vacinadas. [ …] Então, eles cobraram esses dados e também fizeram apontamentos, que eles chamam de incertezas [Café da Manhã, 2021f ]. Nos discursos de jornalistas e experts acionados pelo Café da Manhã , entretanto, não é dado espaço para que a dimensão dos “apontamentos” e “incertezas” seja alcançada. São citados os estudos incompletos, a falta de revisão por pares, os interesses envolvendo as empresas farmacêuticas — “ é muito complicado quando você não tem nada publicado ainda, confiar só no que a parte interessada diz ” [ Café da Manhã, 2021c ]. Mas, nessas edições, mesmo ciente da existência de controvérsias no que concerne às vacinas contra a Covid-19, o discurso jornalístico tende a ofuscar a complexidade da pauta, por meio de dizeres padronizados que intercedem pela credibilidade da ciência. “ Por que não se vacinar se a vacina tem praticamente zero de efeito colateral? Ela só vai te trazer benefícios. [ …] Não existe outra opção para sairmos deste caos. Temos vacinas seguras e eficazes para iniciar o processo” [Café da Manhã, 2021f ], dizem cientistas entrevistados pelo podcast no intuito de conscientizar os ouvintes sobre a importância da imunização coletiva, em defesa da ciência, contra os ataques vindos de setores da sociedade e representantes governamentais. De modo geral, o que predomina é a posição de que “ embora essas vacinas ainda tenham muitos estudos a serem feitos, elas apresentam mais benefícios do que riscos ” [Café da Manhã, 2021f ].

Percebemos que, em meio à crise de credibilidade enfrentada pela ciência e pelo jornalismo, divulgar as descobertas da ciência tornou-se um desafio ainda maior durante a pandemia, visto que o contexto sociopolítico marcado por posições extremistas afastou do jornalismo a viabilidade de evocar discursos mais plurais sobre as vacinas, evitando o aparecimento público de dizeres que, de alguma forma, tivessem potencial para alimentar teorias conspiratórias e posições negacionistas. Com essa estratégia discursiva, ficaram esmaecidos no debate midiático enunciados que pudessem gerar diferentes sentidos acerca dos avanços tecnocientíficos envolvendo o coronavírus — neste caso, interditando discursos representativos para dizer apenas aquilo que se espera de suas posições de sujeitos inseridos numa realidade conflituosa de descrédito à ciência e ao jornalismo. Logo, vemos que, no contexto pandêmico, as práticas jornalísticas, mesmo na condição de mediadoras, também assumem lugar na disputa discursiva traçada entre o político e o científico, atuando como “escudo protetor” da ciência na luta contra o negacionismo e a desinformação.

Apesar de compreendermos a dificuldade enfrentada pelo jornalismo neste cenário complexo, as conclusões deste trabalho nos levam a questionar as consequências de se obscurecer sentidos com potencial de dar mais abrangência às pautas que envolvem a dinâmica tecnocientífica. Os discursos, da forma como são postos, dificultam uma reflexão crítica dos ouvintes do Café da Manhã a respeito da imunização, principalmente porque deixam esmaecidos aspectos que poderiam dar à discussão pública outros enredamentos. Não são alcançadas, dessa forma, algumas das finalidades do jornalismo, que compreendem explicar os fatos de forma aprofundada, apresentar as problemáticas para que sejam discutidas na sociedade e mostrar como o mundo funciona em toda sua complexidade, diversidade e pluralidade [ Reginato, 2019 ].

Para pensar: neste caso específico de nosso estudo, sociedades que não têm conhecimento sobre possíveis riscos e incertezas das vacinas aplicadas em seus corpos são, de fato, sociedades bem informadas? Por outro lado, nos tempos atuais, diante de todas as particularidades, seria válido apresentar vozes que poderiam, de uma forma ou de outra, dar força ao negacionismo e à perseguição a pesquisadores? E, mais: como definir fontes legítimas para falar sobre assuntos delicados como esses? Além disso, é válido questionar: atuando dessa maneira, mesmo que de forma não intencional, o próprio jornalismo não pode acabar contribuindo para o ecossistema desinformativo? — aqui observando-se a complexa teia de circulação e disputa de sentidos que envolve a desinformação, ao passo que instituições epistêmicas, como o jornalismo e a ciência, são tidas como promotoras de uma verdade inquestionável que acaba deslegitimando tudo aquilo que não vai ao seu encontro [ de Oliveira, 2020 ]. Mas, como o jornalismo deve lidar com o “caráter provisório” da ciência se, cada vez mais, é cobrado a entregar respostas concretas à sociedade?

São questões de grande profundidade teórica, que vêm sendo levantadas também por outras pesquisas que já trazem algumas contribuições ao campo de estudos em Jornalismo. Um artigo de de Sousa, Costa, Capoano e Paganotti [ 2020 ] recomenda que, para enfrentar este momento de desafios, aos jornalistas cabe evitar a tentação de se apresentarem como detentores do monopólio do discurso legítimo; os autores sugerem que os profissionais de mídia devem frisar os limites dos estudos científicos na apresentação ponderada e rigorosa dos seus resultados parciais: “o jornalismo não pode aproveitar a oportunidade para pregar dogmas e evitar críticas; precisa mais do que nunca deixar claras as suas fontes, os seus métodos de apuração e os critérios que estão na base das respostas parciais que estão hoje disponíveis” [de Sousa et al., 2020 , p. 27]. No mesmo caminho, Steensen [ 2019 , p. 185, tradução nossa] infere que “os desafios atuais empurram o jornalismo para uma reorientação epistêmica para além das dicotomias certo/errado e verdadeiro/falso” 15 e que as narrativas noticiosas devem estar adaptadas a “um mundo em que conhecimento e verdade são cada vez mais entendidos como construções, e em que a certeza absoluta se tornou um luxo inalcançável” [ 2019 , p. 187, tradução nossa]; 16 o crítico recomenda que o jornalismo precisa, mais do que nunca, reconhecer e expor dúvidas e controvérsias: “A incerteza é uma moeda desvalorizada nas modernas sociedades da informação, e exibi-la pode ser exatamente o que o jornalismo precisa fazer para recuperar a autoridade” [Steensen, 2019 , p. 188, tradução nossa]. 17

Entendemos serem essas algumas inquietações que podem ser consideradas por pesquisadores ao analisarem o jornalismo neste momento de crise, em busca de respostas para lidar com o fenômeno da desinformação relacionada à ciência. A discussão sobre esse assunto, no entanto, claramente não se esgota aqui. Um corpus maior e um possível aprofundamento dos estudos sobre a crise epistêmica e a influência das tecnociências na dinâmica científica envolvendo a saúde pública são perspectivas possíveis de investigação para que este debate possa ser levado adiante em pesquisas futuras.

Referências

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Autor

Claudine Freiberger Friedrich. Aluna de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (POSCOM) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. Bolsista Capes. Jornalista graduada pela mesma instituição.
E-mail: claudine.friedrich@acad.ufsm.br .

Notas

1 No original: “ This dependence on journalism is in fact an aggravating factor in the contemporary world because journalism — a modern institution founded on Anglo-American principles of truth and objectivity — suffers from the same crisis of credibility as science ” [de Oliveira, 2022 , p. 167].

2 De acordo com Pesquisa do Itaú Cultural e Datafolha, divulgada na Folha de S. Paulo , a popularização dos podcasts vem desde 2018, quando as plataformas passaram a investir pesado no formato, sendo que a pandemia intensificou a penetração do podcast no país. Disponível em https://bityli.com/FPZnuu .

3 Estudo realizado pela plataforma CupomValido.com.br, divulgado pela Exame, mostra que o Brasil é o terceiro país que mais consome podcast no mundo; o Spotify tem a liderança como tocador favorito do público, com 25% da participação de mercado, e o Café da Manhã está entre os cinco mais ouvidos pelos brasileiros. Disponível em https://bityli.com/NJUMGn .

4 Dado da Organização Mundial da Saúde, divulgado pelo Portal R7. Disponível em https://bityli.com/sejZPX .

5 Dado levantado pelo Consórcio de Veículos de Imprensa do Brasil e divulgado pelo UOL Notícias. Disponível em https://bityli.com/jEXICN .

6 Entendemos “desinformação” como um fenômeno complexo, que vai além de categorias estanques, que tendem a simplificar a informação em torno de definições dicotômicas e maniqueístas acerca da verdade, de suas fontes de confiança ou da intencionalidade dos sujeitos [de Oliveira, 2020 , p. 16], sendo, portanto, um conceito que ainda encontra-se em construção e que demanda esforços analíticos para observá-lo em toda sua profundidade, abarcando mais do que apenas a produção e divulgação de informações falsas ou manipuladas. Ancorando-nos em estudo de de Oliveira [ 2020 ], que observa a desinformação pela perspectiva da circulação de sentidos — indo além da ótica da produção e da intencionalidade —, entendemos que tipologias usualmente empregadas em pesquisas da comunicação — como as apresentadas por autores como Wardle e Derakhshan [ 2017 ] e Fallis [ 2015 ]— têm grande importância para diversos estudos acerca da desinformação, mas mostram-se insuficientes para a discussão que aqui nos propomos a fazer. Levamos em conta que, quando buscamos definir o conceito de desinformação trazendo-o para o campo científico, outros elementos são incorporados e, por isso, quadros conceituais sobre desinformação que se resumem à intencionalidade dos sujeitos ou à legitimação das instituições epistêmicas como fonte de confiança acabam não possibilitando o desenvolvimento de análises densas sobre as disputas de sentidos em torno da informação, principalmente no que concerne às complexas investigações sobre a pandemia de Covid-19 [de Oliveira, 2020 , p. 6 e 8].

7 No original: “ Today, epistemic communities — including the scientific community — find themselves in the eye of the storm ” [de Oliveira, 2022 , p. 166].

8 No original: “ Journalism in many cultures is today in an epistemic crisis. The main drivers of this crisis are discourses of disinformation and the general datafication of society, which combined render dubious the ways in which journalism assesses sources and information in its production of knowledge ” [Steensen, 2019 , p. 185].

9 No original: “ However, the problem of disinformation is not only related to claims of ‘fake news’ and ‘alternative facts’ put forward by politicians and others in power. It is also related to specific advancements in media manipulation technology, which alter previously established notions of what a trustworthy source is. For instance, tech and software companies are developing sophisticated tools to not only manipulate audio and video recordings” [Steensen, 2019 , p. 186].

10 Vacinas contra a covid-19 criaram 9 novos bilionários. Disponível em: https://bit.ly/3zUabym .

11 Vacinas contra o coronavírus: como o lucro das farmacêuticas alimenta o sigilo de contratos com governos. Disponível em: https://bbc.in/3OYXsyH .

12 No original: “la tecnociencia se caracteriza ante todo por la emergencia, consolidación y desarrollo estable de un sistema científico-tecnológico que da un lugar a un nuevo modo de producción de conocimiento. [ …] se caracteriza por la instrumentalización del conocimiento científico-tecnológico. El avance en el conocimiento deja de ser un fin en sí mismo para convertirse en un medio para otros fines” [Echeverría, 2003 , p. 15].

13 Pesquisa DataFolha, relatada no episódio “A diplomacia brasileira em tempos de vacina” [ Café da Manhã, 2021a ]. Disponível em https://bityli.com/SENcu , último acesso em 14 de janeiro de 2023.

14 Pesquisa DataFolha, relatada no episódio “A diplomacia brasileira em tempos de vacina” [ Café da Manhã, 2021a ]. Disponível em https://bityli.com/SENcu , último acesso em 14 de janeiro de 2023.

15 No original: “ I will argue that these challenges push journalism towards an epistemic reorientation beyond the right/wrong and true/false dichotomies ” [Steensen, 2019 , p. 185].

16 No original: “ The ways in which journalism produces knowledge claims need to be more adapt to a world in which knowledge and truth are increasingly understood as constructions, and in which absolute certainty has become an unreachable luxury ” [Steensen, 2019 , p. 187].

17 No original: “uncertainty is an undervalued currency in modern information societies, and displaying it might be exactly what journalism needs to do in order to regain authority” [Steensen, 2019 , p. 188].