1 Introdução

A desinformação e o negacionismo que tem como foco as vacinas remontam os primórdios da prática da inoculação na antiga Pérsia e tem acompanhado o desenvolvimento de imunizantes ao longo dos tempos. No século XVIII Edward Jenner criou a vacina da varíola a partir da prática da inoculação herdada dos persas. Posteriormente, no século XIX, nasceu em Londres a Liga Nacional Antivacinação [ Rêgo, Galhardi & Leal, 2023 ].

No Brasil a Liga contra a Vacina obrigatória foi uma das articuladoras da Revolta da Vacina de 1904 [ Hochman, 2011 ].

Os movimentos antivacina renasceram com grande força nas últimas décadas do século XX, principalmente, a partir da ação do médico britânico Andrew Wakefield que colocou em suspeição a vacina tríplice viral (MMR) situando-a como responsável pelo aumento do número de casos do Transtorno do Espectro Autista (Síndrome de Asperger). Wakefield mesmo após comprovação de fraude na pesquisa e de ter seu registro cassado e suas publicações retiradas de revistas científicas como a The Lancet , obteve grande repercussão e ganhou inúmeros adeptos para sua causa tanto na Inglaterra, quanto nos Estados Unidos [ Rêgo et al., 2023 ].

O que aqui denominamos de movimentos antivacina possuem inúmeras faces e milhares de braços que se espalham também pelo espaço virtual das plataformas digitais e que ancorados nessas estruturas, se colocam como extensões lucrativas de uma cadeia produtiva que se lança contra os imunizantes para enfermidades que podem ser combatidas e eliminadas.

Algumas pesquisas, como a desenvolvida pelo Massachusetts Institute of Technology [ Dizikes, 2018 ], apontam para o potencial viralizador das narrativas que contém desinformação tendo em vista sua composição estrategicamente pensada e moldada com conteúdo que convoca afetos como o medo e o ódio [ Safatle, 2016 ], cujo potencial político termina forjando uma receptividade acrítica em parte dos indivíduos que recebem a desinformação.

Essa potência tem sido explorada pelos movimentos antivacina que integram um mercado da desinformação fomentando sua lucratividade. A arquitetura estratégica que estrutura esses movimentos possui em seus pilares todo um mercado de comunicação cujo produto são informações pautadas em pesquisas da denominada fake Science 1 que procuram descredibilizar as vacinas.

De acordo com pesquisa do Center for Countering Digital Hate [ CCDH, 2022 ] apenas dois boletins com informações antivacina, vinculados a dois dos personagens dos movimentos antivacina mais conhecidos nos Estados Unidos, a saber: Joseph Mercola e Alex Berenson, possuem uma relação com dezenas de milhares de assinantes pagantes, para cada um dos boletins. Segundo o CCDH, os dois boletins possuem uma receita anual de mais de US$ 2,2 milhões, perfazendo um total de US$ 183.000 por mês. Joseph Mercola foi apontado pelo The New York Times como o maior propagador de desinformação nos anos iniciais da pandemia da Covid-19 e, assim como, Berenson também já foi punido pelas plataformas digitais, o que fez com que migrasse seus conteúdos para sites pagos. Contudo, o material desinformativo que ambos produzem com grande frequência, continua circulando nas redes sociais.

Outra pesquisa do CCDH aponta para os doze maiores empresários dos movimentos antivacina e revela a lucratividade do grupo. O estudo denominado Pandemic Profiteers — the business of anti-vaxx [ CCDH, 2021 ] revela que a indústria Anti-Vaxx possui uma receita estimada por baixo de cerca de US$ 36 milhões e um valor de mercado de aproximadamente US$ 1,1 bilhões para as big Techs em cujas plataformas, os anti-vaxxers possuem cerca de 62 milhões de seguidores.

Em outra frente, o Global Desinformation Index publicou um relatório intitulado Popular Brands Appearing next to Anti-Vax disinformation [ GDI, 2021 ] apontando uma extensa relação de marcas empresariais populares e muito consumidas nos mercados de todo o planeta e que tiveram suas logomarcas veiculadas ao lado de produtos desinformativos sobre vacinas que circularam em larga escala nas redes sociais digitais durante os piores anos da pandemia da Covid-19.

O GDI localizou marcas que financiam narrativas com desinformação antivacina, destacando 15 marcas principais, a saber: Viatris, Jeep, Marriott International, Chevrolet, Amazon, Progressive, Capital One, Kohl’s, The Real Real, Thermo Fischer Scientific, Agoda, BoConcept, Ghirardelli Chocolate, Ebay e Discover. O relatório do GDI também relaciona os serviços de plataformas que acatam anúncios de desinformação antivacina, financiam e monetizam conteúdos desinformativos, tais como: Google, Infolinks, AdSupplly, Xandr e PubMatic.

No ambiente brasileiro, pesquisadores têm investido na compreensão do papel e da ação das plataformas na sociedade e sua influência no aumento ou diminuição de circulação da desinformação com ênfase nos cenários pandêmico e político. de Almeida Fonseca e de Brito d’Andréa [ 2020 ] investigaram o processo de gestão e de mediação do YouTube no que concerne às informações sobre a pandemia em seus primeiros meses, tendo como foco as políticas de moderação, monetização e recomendação e concluíram que a plataforma se esforçou em limitar a circulação de desinformação através das mudanças constantes nos termos de serviço e política da plataforma. Entretanto, em nosso prisma, o resultado pontual em 2020 não se traduziu em benefícios aos usuários, tendo em vista que muito embora, as atualizações nos documentos mencionados sejam constantes, esses procedimentos têm se mostrado ineficientes para combater a desinformação sobre vacinas e pandemia, tanto quanto, sobre outros temas, tendo em vista que as plataformas como Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), Alphabet (YouTube) e Twitter não conseguem cumprir as próprias diretrizes e políticas [ Barbosa, Martins & Valente, 2020 ].

Nesse sentido, uma pesquisa realizada por Tokojima Machado, Fioravante de Siqueira, Rallo Shimizu e Gitahy [ 2022 ] e que reuniu investigadores da Unicamp, do Institute for Globally Distributed Open Research and Education (IGDORE) e do Berkeley Institute for Data Science-University of California revelou que no YouTube quatro entre 10 vídeos contém desinformação e lucram com anúncios e monetização. Esta pesquisa teve como foco 50 canais conhecidos como disseminadores de informações falsas no período inicial da pandemia da Covid-19 no Brasil. De acordo a investigação realizada em 3.318 vídeos, 41% dos vídeos que mencionavam a Covid-19 traziam alguma desinformação.

A contextualidade exposta pelas pesquisas mencionadas nos revela que as plataformas digitais como estruturas tecnológicas que atraem e abrigam um novo modo de existir no mundo se colocam como palco para conteúdos que, prioritariamente, possuem potência para viralizar e consequentemente para monetizar, perfil em que se encaixa a desinformação, portanto, é no sentido de trazer para o debate os lados que envolvem a problemática aqui exposta que partimos para pensar as plataformas e a gestão da vida virtual na atualidade, como também, o mercado da comunicação que alimenta a desinformação científica enquanto fenômeno social coletivo.

2 Plataformas digitais, os modelos de negócios e a vida na contemporaneidade

Moazed e Johnson [ 2016 ] ao falar sobre o panorama dos novos monopólios capitalistas abordam as estruturas, os conceitos e as estratégias dos modelos de negócios das plataformas digitais e são enfáticos em afirmar que somente se configuram como plataformas as estruturas tecnológicas que em si, são modelos de negócios abertos, estruturados para proporcionar o encontro entre quem procura e quem oferta. Não se trata de negócios virtuais que oferecem determinados serviços fechados em seus canais de visibilidade e acesso, mas do lócus onde, hipoteticamente, o principal interesse é proporcionar o encontro, a conexão. Para os autores, os modelos de negócios das plataformas digitais são pautados para facilitar trocas entre dois ou mais grupos interdependentes, não se configurando como meios de produção, mas como meios de conexão.

Grandes plataformas de streaming como Netflix e HBO não se configuram como plataformas digitais no modelo que Moazed e Johnson [ 2016 ] detalham, tendo em vista que ofertam os produtos, mas não criam conexões entre os usuários, ao passo que o YouTube, também considerado uma plataforma de streaming no sentido estrito, é também uma plataforma digital conectiva. Vinculada a Alphabet Inc., o YouTube é um lugar que permite veiculação de conteúdos e criação de redes de relacionamento e sociabilidades, despertando afetividades, influenciando a vida dos usuários inscritos em seus canais.

Moazed e Johnson [ 2016 ] afirmam que para gerar valor e proporcionar conectividade as plataformas se apresentam como uma mão invisível que dá suporte aos usuários, entretanto, para nós, a conexão proporcionada pelas plataformas se apresenta como uma capa imagética mercadológica vendida como estratégia de marketing e que possui um lado visível para atração do mercado de vendedores e consumidores em todas as instâncias. Todavia, para que a conectividade se estabeleça e os fluxos empresariais alcancem seus objetivos no mercado virtual, como também no mercado tangível que utiliza os serviços de plataforma, há um grande espaço onde inúmeras estratégias são postas em ação.

Para Zuboff [ 2020 ] as estratégias da economia da ação, utilizadas pelas plataformas para atração humana de modo permanente e com o objetivo de manter os usuários online em cada plataforma de conteúdo, têm como intuito principal a extração da experiência humana, não somente para aprimoramento de seus produtos e serviços, nem tampouco apenas para venda imediata ao mercado de anunciantes em suas redes, proporcionando a mencionada conexão, mas, principalmente, para composição de seu capital de predição imediato e futuro.

É sobre essa composição de um capital de predição de comportamento humano pautado na experiência da humanidade que nos alerta Zuboff [ 2020 ] tendo em vista todo o aparato de vigilância e controle de que se utilizam as plataformas para manter os usuários sob suas vistas, como bem denunciam Sodré [ 2021 ] e como Rêgo [ 2020 ].

Dentre as estratégias de ação para a atração da atenção dos indivíduos, as plataformas incentivam seus usuários produtores de conteúdo a criar narrativas que se tornem atrativas para a audiência, com vistas a vencer a concorrência pela atenção no universo infinito de informações que disputam o olhar dos usuários no ciberespaço.

Os modelos de que falam Moazed e Johnson [ 2016 ] como guias voltado para conexão e promoção de negócios são na verdade modelos predatórios que privilegiam conteúdos com potência viral, 2 como as fake News , que por sua vez, são atrativos para o fluxo de recursos que o mercado de tangíveis e intangíveis investe para obter visibilidade e atenção nas plataformas, como visto em algumas das pesquisas relacionadas. A arquitetura da visibilidade que estrutura o modelo de negócios de cada big Tech possui vias expressas para o fluxo do dinheiro que entra nas plataformas e se direciona aos conteúdos que obtém maior visibilidade, motivo pelo qual muitas marcas renomadas e com reputação no mercado passam, muitas vezes sem conhecimento prévio, a financiar canais, sites e perfis que somente trabalham com desinformação, negacionismo e teorias da conspiração.

As possibilidades conectivas fomentadas pelas plataformas são limitadas aos seus interesses e embora Moazed e Johnson [ 2016 ] as defendam, afirmando que as plataformas não controlam o comportamento dos usuários que se apropriam de seus recursos tecnológicos e invertem muitas vezes a lógica proposta, há que se ter consciência de que para além das intenções mercadológicas e da própria retroalimentação do capital neoliberal, há uma grande responsabilidade das plataformas que jogam com modelos de negócios cujas estratégias permitem fomentar a mentira, o ódio, a xenofobia, o racismo, o machismo, a misoginia e que tem levado à violência física, muitas vezes culminando em mortes.

Nesse caminho, ponderamos que as plataformas digitais que se utilizam de modelos atrativos para fomento do mercado e vendem uma ideia de iluminação capitalista possível para todos que venham a dominar suas estratégias de marketing e conseguir se vender nas plataformas, possuem na verdade um interesse maior em acumular e trabalhar a experiência humana como capital de predição comportamental que possa guiar os passos das plataformas tanto no que concerne às relações financeiras com o mercado futuro imediato, como no que se refere ao aprimoramento da AI-Inteligência Artificial e de seus projetos de futuro.

Para extrair e depois acumular a experiência humana nas camadas cloud , as plataformas como a Alphabet/Google, considerada um para-Estado [ Bratton, 2016 ], assim como, as plataformas da Meta e outras, se utilizam das estratégias de atração para atenção já comentadas acima e proporcionam um novo modo de existir no mundo que se dá exatamente no lócus que desenham em seus espaços virtuais, configurando novas sociabilidades e afetividades. É nesse sentido, que Sodré [ 2021 , p. 13] alerta para o fato de que “o que está realmente em curso é uma reconfiguração antropológica da vida humana; logo, do sujeito real [ …]”.

Como afirma Sodré [ 2021 , p. 14] essa nova existência humana se dá em um novo modelo de “ urbs , imaterial, com normas próprias de habitação e de circulação de discursos”, modelo este que é guiado pelo capitalismo tecnológico das plataformas, cujos padrões são vendidos como de conexão ideal para o ambiente de negócios, embora como dito, se configurem como estruturas de exploração dos indivíduos. Nesse contexto, a desinformação prolifera como produto ideal para um tipo de conectividade que termina por explorar a miséria humana, a ignorância e as deficiências cognitivas, atuando diretamente nas emoções e nos afetos.

Lee e Qiufan [ 2022 ] alertam para o comportamento da Inteligência Artificial-AI das grandes plataformas cada vez mais independentes. A AI do Facebook, por exemplo, é treinada para mostrar conteúdos que possam maximizar o número de minutos que cada indivíduo passa dentro da plataforma, se expondo assim para a extração e mineração de dados e de sua experiência. A AI da Meta trabalha de modo focado, apresentando conteúdo personalizado para cada usuário.

O Google que em 2015 se transformou em Alphabet e adquiriu a empresa inglesa DeepMind especializada em redes neurais artificiais, criou em 2017 um novo modelo de transdução de sequências mnemônicas abastecido com grandes quantidades de informações. Em 2020 foi a vez do laboratório OpenAI fundado por Elon Musk que lançou o GPT-3 que seria um transformador generativo pré-treinado. Esse modelo foi treinado com mais de 45 terabytes de texto, o que seria preciso 500 mil vidas humanas para ler [Lee & Qiufan, 2022 , p. 137].

Mas o que isso tem a ver com nosso tema? Ora, para se acumular tanta informação é preciso extraí-la também dos seres humanos e para tanto, faz-se necessário que a humanidade esteja disponível para tal extração, logo a desinformação, como dito e aqui reiterado, se enquadra como uma estratégia de ação para atração da atenção, mesmo que seja uma consequência não prevista inicialmente e negada pelas plataformas digitais. Obviamente que outras vias são utilizadas pelas big Techs como a digitalização em massa das maiores bibliotecas do planeta, realizada pelo Google no início do presente milênio.

3 Comunicação e desinformação científica

Paulo Freire define a comunicação como algo com potência para separar, mas também para fazer pontes e a um tempo a situa em alguns eixos, a saber: inicialmente como algo inerente à existência humana, como possibilidade de diálogo e compromisso ético-político, como ação cultural voltada para os processos de resistência e liberdade e, por fim, como relação dialética comprometida com o social e o político [ Freire, 1977 , pp. 11–37].

A comunicação, portanto, ultrapassa os processos tecnológicos que a atravessam tendo em vista que sua consolidação se dá a partir da construção dos laços entre a mente humana e a sociedade em prol de uma existência crítica. No entanto, como nos lembra Sodré [ 2021 , p. 25] “nessa conjuntura histórica, a comunicação funcional vem se impondo há décadas como o código do novo ordenamento social”.

É nesse ambiente funcional e digital que as diversas vias comunicacionais tecnológicas se colocam como possibilidades para a fruição da informação em larga escala. Desde a década de 1970 já se prenunciava uma sociedade com excesso de circulação informacional, o que por sua vez, veio a provocar, a posteriori, uma economia da atenção [ Rêgo & Barbosa, 2020 ], hoje tão explorada pelas big Techs .

No Reino Unido uma pesquisa do Reuters Institute [ 2020 ] revelou que nos três primeiros meses da pandemia houve um aumento de 900% na checagem de fake News com ênfase nos temas sobre a Covid-19.

É nesse contexto que pensamos a tecnologia como algo não neutro e as plataformas como estruturas de um capitalismo neoliberal totalitário cuja imobilidade se anuncia como perniciosa à sociedade global, diante de todo o mal que a desinformação que circula em seus espaços virtuais tem causado ao planeta.

A desinformação propagada pelos movimentos antivacina , para além dos lucros que traz para si, enquanto mercado estruturado em forma de cadeia produtiva que se espalha de modo reticular pela internet, como também para as plataformas considerando o quanto os conteúdos desinformativos atraem e provocam engajamento espontâneo coletivo, se apresenta como um produto moldado em um processo comunicativo cuja ética não considera a importância da vida humana, pois ao tensionar os regimes de verdade [ Foucault, 2010 ] e se direcionar ao circuito de afetos [ Safatle, 2016 ] que circulam no contexto social, procura ativar respostas a partir da afetividade e da afetação que cada narrativa com desinformação pode ou não provocar em que a recebe, para assim conseguir seus objetivos. O despertar da dúvida, o plantar do medo e o evocar do ódio possuem juntos, uma força social destrutiva.

A receptividade da desinformação acontece quando sua construção é povoada por mediações que se utilizam do circuito de afetos, muito mais do que por uma dissonância cognitiva, que nem de longe negamos que exista, mas acreditamos que o relacional da comunicação e a evocação dos afetos possuem um peso maior na recepção das narrativas com desinformação que possuem potência para construção ou manutenção de uma ignorância coletiva [ Rêgo & Barbosa, 2020 ].

Sacramento e Paiva [ 2020 ] em pesquisa sobre o papel do WhatsApp e da desinformação na recusa das vacinas da febre amarela concluem que o impacto no regime de verdade que faz com que as pessoas recusem informações de fontes confiáveis e duvidem das vacinas está mais vinculado à convicção pessoal, do que a um processo de persuasão coletiva. De modo complementar e para nós, tal convicção só se estrutura a partir da ativação dos afetos que intencionalmente ou não, são postos em circulação e podem intervir na formação da opinião individual.

Em um caminho convergente, Brown et al. [ 2018 ] ao pesquisar sobre o comportamento da população brasileira no que se refere à confiança nas vacinas e a hesitação em vacinar, concluem que a maior parte dos entrevistados (41,4%) desconfiava dos imunizantes, já 25% achava que as vacinas não eram seguras, enquanto que 23,6% relatava outras preocupações. Esses autores sugerem um monitoramento constante, tendo em vista o crescimento da recusa aos imunizantes, mesmo diante de um cenário cultural brasileiro de confiança na vacina. Vale destacar que este estudo é direto e pontual e não trata de outras questões subjetivas que podem deflagrar a desconfiança e levar à hesitação, como também não aborda desinformação.

O fenômeno da desinformação e especificamente sobre as vacinas acontece no encontro entre as possibilidades ofertadas pelos modelos de negócios das plataformas e suas estratégias de atração para atenção, assim como, pela apropriação dessas possibilidades por um mercado da comunicação, cujo produto principal passou a ser a desinformação e que tem se alinhado aos movimentos que combatem os imunizantes. Já a aceitação de seus conteúdos por parte dos usuários, se estabelece junto aos indivíduos a partir de suas crenças e valores.

4 Ilação

A desinformação sobre vacinas não é algo novo, como dito no início deste ensaio, contudo, a plataformização da vida tem provocado uma potencialização desse tipo de conteúdo nas redes sociais que impulsionados e/ou por engajamento espontâneo atingem milhões de pessoas, influenciando-as. Entretanto é preciso considerar que existem no Brasil 28,2 milhões de brasileiros sem acesso à internet e cerca 86 milhões com acesso precário [ IBGE, 2022 ], o que implica em uma dieta de mídia reduzida e circunscrita ao pouco acesso informativo/desinformativo que podem ter. Tal realidade poderia significar que a desinformação em larga escala não chegaria a esse grande número de pessoas, todavia, o acesso precário é marcado por um comportamento de mercado que inclui uso de dados pré-pagos mínimos e larga utilização de redes livres como as redes da Meta (Facebook e WhatsApp), por onde a desinformação flui de modo fácil.

Inúmeras pesquisas realizadas no Brasil entre o final de 2020 e o final de 2022 apontaram para um crescente número de brasileiros que apesar da desinformação, optaram por se vacinar contra a Covid-19, embora o número dos que não se vacinaram seja grande, principalmente, diante de quase 700 mil mortos pela doença [ Ministério da Saúde, 2023 ]. Em maio de 2021, uma pesquisa Datafolha [ 2021 ] revelou que 91% dos brasileiros pretendiam se vacinar ou já estavam se vacinando, enquanto 8% não pretendia. Em termos gerais, a população do Brasil responde de modo positivo à vacinação tendo em vista a cultura de imunização construída ao longo das últimas décadas, nesse contexto é importante destacar os resultados de uma pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência [ INCT-CPCT, 2022 ] que revelou que a maioria dos brasileiros considera as vacinas eficazes, seguras e importantes para combater a pandemia da Covid-19. Um pouco antes, nova pesquisa Datafolha [ 2022 ] revelou que enquanto 79% dos brasileiros apoiavam a vacinação, cerca de 8 milhões e meio de pais/mães eram contrários. O maior motivo parece ter vínculo com a desinformação sobre vacina para o público infantil.

Ao longo dos últimos três anos percebeu-se que a desinformação sobre a pandemia que circula em forma de narrativas híbridas e cruzadas e que incluem o combate ao uso de máscaras, ao distanciamento social e às vacinas, tem crescido de modo exponencial (como bem mostram os resultados das pesquisas mencionadas no início deste texto), tanto quanto tem provocado indiretamente a morte de muitos cidadãos em vários países. Por outro lado, os lucros do mercado da desinformação, monitorado de perto por diversos grupos da sociedade civil no Brasil e no mundo, se mostram promissores e atraem mais e mais indivíduos que veem na desinformação cientifica, sobretudo, antivacina, um meio de ser bem remunerado na relação com as plataformas digitais, tendo em vista a visibilidade potencializada e a monetização certa. Há que se ter em mente ainda, os diversos polos em que a desinformação é o produto principal, seja nos veículos/canais dos movimentos antivacina ou até mesmo, na mídia tradicional.

Por fim, ressaltamos a intrínseca relação entre os movimentos antivacina, o mercado da desinformação e as plataformas digitais que fomentam tais práticas a partir dos modelos de ação que adotam para potencializar o lucro próprio e de todos os envolvidos. A tríplice composição das estruturas da desinformação antivacina potencializa de forma negativa a relação dos cidadãos brasileiros com os imunizantes atualmente, embora, como dito, o Brasil tenha uma cultura de vacinação já bem consolidada.

5 Funding

Research funded by CNPQ.

Referências

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Autores

Ana Regina Rêgo é jornalista pela UFPI. Mestra em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Doutora em Processos Comunicacionais pela UMESP com estágio de doutorado na UAB-Barcelona e Pós-Doutorado em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Professora PPGCOM-UFPI e atualmente Coordena a Rede Nacional de Combate à Desinformação-RNCD Brasil.
E-mail: anareginarego@gmail.com .

Ranielle Leal é jornalista pela UFPI com MBA em Marketing pela FGV-RJ. Mestra em Processos Comunicacionais pela UMESP e Doutora em Comunicação Social pela FAMECOS-PUC-RS com estágio de doutorado na Universidade Fernando Pessoa-Porto-Portugal. Professora do Curso de Jornalismo da UESPI.
E-mail: ranileal29@gmail.com .

Notas

1 O que aqui denominamos de fake Science refere-se a uma pseudo prática científica que utiliza dados falsos sobre a ciência em diversos ambientes e segmentos, objetivando plantar a dúvida na sociedade sobre preceitos científicos já pacificados e assim conseguir adeptos para causas como o movimento antivacina .

2 Obviamente que nem todo conteúdo atrativo é desinformativo.