1 Introdução

Atualmente, mensagens falsas1 apresentam informações falsas ou enganosas comunicadas com o intuito de noticiar a população ou determinados grupos sociais. As mensagens falsas vão além do simples fato errôneo ou mal interpretado, elas têm o intuito de induzir uma interpretação equivocada sobre o objeto de referência [Turk, 2018]. Assim, as mensagens falsas orientam, por meio de mentiras ou informações parciais, a interpretação da realidade e conduta humana a partir da comunicação social [Allcott & Gentzkow, 2017]. Portanto, as mensagens falsas tentam deturpar propositalmente a interpretação da realidade. Geralmente o motivo da criação das mensagens falsas é o lucro em suas várias formas ou conformidade ideológica, especialmente relacionada a pautas políticas [Lawson & Kakkar, 2022].

As mensagens falsas abrangem diversos temas pertinentes na sociedade devido à sua natureza político-ideológica. Na literatura especializada, o estudo sobre as mensagens falsas sobre temas científicos ganhou maior destaque após a pandemia. Contudo, estudos sobre comunicações falaciosas sobre pautas negacionistas têm sido realizados há algumas décadas [Gangarosa et al., 1998; Schadewald, 2008; Kolmes, 2011].

No Brasil a situação da infodemia2 foi calamitosa, pois, para além do grande volume de informações disseminadas, parte significativa da população acreditou em informações falsas. Receitas milagrosas, hidroxicloroquina, isolamento vertical e demais tratamentos precoces foram medidas promovidas deliberadamente em mensagens falsas no Brasil, mesmo não havendo comprovação científica [Barcelos et al., 2021]. Ainda nos primeiros meses da pandemia, Avaaz [2020] ressaltou que 94% dos participantes já haviam tido contato com informações falsas sobre a pandemia, sendo que 73% dos brasileiros participantes da pesquisa acreditavam em ao menos uma informação inverídica.

Entendemos que a crença em mensagens falsas não ocorre devido à falta de senso crítico, isso acarretaria culpar o interlocutor por ser enganado. O processo de convencimento também está relacionado com as motivações e estratégias do produtor da mensagem, pois ela se apropria de elementos capazes de produzir o efeito de legitimidade e credibilidade [Tandoc Jr. et al., 2018; Lima, Calazans & Massi, 2021]. Informações pseudocientíficas ou científicas, bem como agentes da ciência e tecnologia (laboratórios, empresas, cientistas etc.) foram frequentemente usados para produzir o efeito de legitimidade e credibilidade [Andrade, Ferreira & Lima, 2023] em informações falsas que circularam no Brasil.

O presente estudo objetiva compreender as relações internas das mensagens falsas sobre a pandemia, especialmente no sentido de entender como elas se apropriaram de aspectos da cultura científica e tecnológica na composição do conteúdo. Este trabalho apresenta a análise de 152 mensagens falsas sobre a Pandemia que circularam no Brasil no período entre 02 de janeiro de 2020 até 04 de dezembro de 2020, classificando-as tematicamente, tipologicamente e correlacionando as técnicas de persuasão que as compuseram.

A compreensão de como a ciência e a tecnologia são apropriadas para produzir efeitos de legitimidade e credibilidade em mensagens falsas pode contribuir com o desenvolvimento de ferramentas e práticas para combater a desinformação que se apropria desses campos da atividade humana.

2 Revisão da literatura

Durante e após as eleições presidenciais estadunidenses de 2016 ficou evidente a influência das mensagens falsas na conduta humana. Tal acontecimento, somado ao processo do Brexit e à eleição Brasileira em 2018, acenderam o alerta da sociedade sobre o perigo da manipulação de informações.

Esse assunto passou a ser abordado teórica e empiricamente para compreender como as mensagens falsas podem ser usadas como ferramenta política [Allcott & Gentzkow, 2017]. Em meio às diversas contribuições acadêmicas, Turk [2018, p. 08, tradução livre] define desinformação como “todas as formas de informação falsa, imprecisa ou enganosa, criada, apresentada e promovida para intencionalmente causar dano público ou por lucro”.

O crescimento da desinformação no mundo despertou inclusive o interesse internacional em combatê-la [Turk, 2018]. Exemplo disso foi a fundação, em 2015, da International Fact-Checking Network (IFCN), uma rede internacional que congrega diversas agências jornalísticas de verificação de fatos que visa combater a desinformação. No caso específico da desinformação sobre a pandemia foi criada a organização Latam Chequea, que congrega países Iberoamericano e está vinculada à IFCN.

Clarificando as definições de notícias falsas, Tandoc Jr. et al. [2018] propõem uma definição mais precisa para o termo: uma comunicação falaciosa que se apropria de elementos dos veículos de comunicação; portanto, uma notícia falsa tenta se passar por notícia real produzida por determinado veículo de comunicação. Tal definição estabelece limites para compreender diferentes tipos de mensagens falsas. Os boatos, por exemplo, não têm essa característica, eles simplesmente comunicam determinada informação sem tentar parecer uma notícia de um veículo oficial de comunicação.

Outros conceitos relevantes são: legitimidade e credibilidade. A legitimidade está relacionada ao fato da mensagem ser legítima/verdadeira/real, portanto, está pautada na ideia de que a mensagem foi produzida exatamente pela fonte anunciada — por isso a legitimidade está mais relacionada às notícias falsas do que aos boatos (uma vez que estes últimos nem sempre fazem referência a uma fonte). A credibilidade, por sua vez, está relacionada ao convencimento do interlocutor, isto é, se o conteúdo transmitido é confiável.

A produção de conteúdo jornalístico de qualidade, em teoria, está fundamentada na legitimidade e credibilidade. Ao imitar veículos oficiais de notícias, as notícias falsas podem enganar os leitores, produzindo um verniz de legitimidade [Tandoc Jr. et al., 2018] para usurpar a legitimidade e credibilidade do veículo de comunicação.

Ainda que parte significativa da literatura sobre desinformação esteja fundamentada em estudos com assuntos políticos e ideológicos, a pandemia de covid-19 evidenciou que os mais diversos temas podem ser abordados pelas mensagens falsas. Com a infodemia, diversas investigações científicas tentaram compreender características desse fenômeno para buscar estratégias para combatê-lo.

Em estudo empírico, Calvillo e colaboradores [2020] examinaram a relação entre conservadores americanos e percepções da covid-19. Esse trabalho indicou que há uma disposição maior para que os conservadores percebam mais ameaças com relação a acontecimentos gerais. Indicaram também que o grupo de conservadores que apresenta alto índice de aprovação presidencial (Trump) também apresentou menos conhecimento sobre covid-19 e epidemiologia, o que implica maior susceptibilidade às mensagens falsas. Esses resultados evidenciam a importância da liderança política e da mídia em formar percepções de ameaça, e especialmente, percepções sobre a pandemia.

Ao estudar sobre o impacto das mídias sociais na disseminação de informações sobre a pandemia e sua influência na saúde, Rocha et al. [2021] mostrou que a exposição às más-informações pode causar males psicológicos, pânico, medo, depressão e fadiga. Após investigar diferentes grupos sociodemográficos, Balakrishnan e colaboradores [2022] mostra que comunidades de baixa renda, com nível de educação mais baixo e que usam mais as mídias sociais são as mais vulneráveis às notícias falsas. Essas contribuições, destacam o impacto que a manipulação propiciada pelas mensagens falsas tem na sociedade.

Hameleers, Humprecht, Möller e Lühring [2021, p. 1, tradução livre] destacou que “cidadãos desinformados são um grande obstáculo para a ação coletiva em sociedades democráticas”, e concluiu que a mensagem falsa é mais eficiente em enganar o leitor quando está misturada com fatos verdadeiros, tornando a mensagem parcialmente falsa.

A percepção de informações falsas depende de diversos fatores. Para Lewandowsky e colaboradores [2012, p. 112], os cidadãos são “capazes de acessar a credibilidade da informação com base nas características das mensagens, tais como a coerência da história e a consistência da informação com conhecimento anterior”. No entanto, quanto mais a desinformação se parece com qualquer outra mensagem jornalística tanto mais difícil será discernir sobre sua legitimidade e credibilidade. Além disso, a desinformação pode ser convincente quando confirma e ressoa com crenças dos interlocutores, e isso pode ser entendido como um resultado do viés de confirmação, explicado pelos mecanismos do raciocínio motivacional [Knobloch-Westerwick, Mothes & Polavin, 2017].

A produção de efeitos de legitimidade para as mensagens falsas, também é influenciada pela crise de confiança da população nas mídias oficiais, o sentimento antiestablishment decorrente das sucessivas crises do capitalismo, falta de letramento científico da população geral e desejo por cura da doença responsável pela pandemia [Hameleers et al., 2021]. Além disso, não se pode perder de vista que a tentativa de manipulação acontece no contexto existente da luta de classes [Lima et al., 2021]. Debatendo as origens de fenômenos como as mensagens falsas, Cesarino [2021] defende que estamos vivendo uma crise epistêmica com relação às mediações que organizam a produção de conhecimento humano. Segundo a autora, há uma desorganização na qual a comunidade científica e o sistema de peritos deixam de gozar da confiança social e credibilidade de outrora, e assim sendo, as mensagens falsas se fortalecem com essa crise.

No entanto, ainda que essa interpretação conte com diversos adeptos, consideramos questionável, pois não parece afetar sistematicamente todos os campos de atuação humana. Questionamos aqui não a existência de crises cada vez mais sucessivas, que no nosso entendimento decorre do estágio de desenvolvimento do capitalismo, mas a interpretação que ela afeta indistintamente todas as esferas de produção ideológica do chamado sistema de peritos.

É evidente que a ciência e a tecnologia têm enfrentado resistência e ataques de vários grupos negacionistas. No entanto, isso parece seguir uma dinâmica recorrente no desenvolvimento histórico da ciência, em que essa, periodicamente, é alvo de críticas provenientes de grupos religiosos, políticos e ideológicos.

Entendemos que os ataques à ciência não são capazes de instaurar desconfiança social a ponto de negar os conceitos, práticas e procedimentos científicos; podem afetar em menor escala pequenos campos da ciência e da tecnologia. A exemplo disso, podemos citar os dados de vacinação de covid-19 no Brasil. Mesmo com todo o esforço de grupos negacionistas, o ministério da saúde indica que mais de 80% da população foi completamente imunizada; isto é, na prática 80% da população confiaram na ciência e na tecnologia para a prevenção da doença. As pesquisas de percepção pública de ciência e tecnologia também mostram resultados que nos fazem questionar a interpretação sobre a crise epistêmica. Realizada sistematicamente no Brasil desde 2006, a pesquisa indica que para a maioria dos brasileiros os governantes deveriam seguir orientações científicas. Esses resultados provavelmente decorrem da interpretação de que a ciência e a tecnologia produzem mais benefícios que malefícios para a sociedade — resultados que também foram apontados pela pesquisa de percepção pública de ciência e tecnologia. Em acréscimo, com mais 1000 participantes, a Pesquisa do Índice do Estado da Ciência mostra que 90% da população brasileira confia na ciência, inclusive a confiança aumentou após a pandemia [3M, 2022].

Massarani e colaboradores [2021] também apresentam resultados que nos ajudam a fortalecer nosso argumento de que a crise epistêmica não é generalizada e parece afetar pouco a credibilidade da ciência. Em uma revisão, os autores mostram: que 89% dos brasileiros consideravam que era necessário ouvir mais os cientistas e menos os políticos; que a grande maioria seguiram orientações científicas para a prevenção da covid-19 como lavar as mãos (97%), evitar aglomerações (91%), evitar contato físico (85%) e fazer isolamento social (84%). Os resultados sobre a confiabilidade das fontes indicam que a esmagadora maioria da população brasileira confia na ciência, sendo as fontes mais confiáveis: Médicos/profissionais da área de saúde, Organização Mundial de Saúde, Cientistas de universidades ou institutos de pesquisa e Ministério da Saúde; é marcante o fato que houve apenas uma resposta indicando religioso, ou político como fonte confiável para informações sobre covid-19 [Massarani et al., 2021].

Em síntese, a confiança que a população brasileira tem na ciência decorre de diversos fatores, dentre eles a capacidade da ciência e da tecnologia solucionar problemas da vida cotidiana e elevar a qualidade de vida da humanidade. Em casos de saúde, a grande maioria da população procura: médicos; em caso de conserto de dispositivos: técnicos; para a construção de moradias: engenheiros; muitos escutam orientações nutricionais, psicológicas e de atividades física, predominantemente de profissionais ligados à ciência e à tecnologia.3 Enfim, a prática social indica que a ciência e a tecnologia têm muita credibilidade no Brasil. Por isso, parece-nos mais adequado compreender que ainda que haja o fortalecimento de algumas posições negacionistas em determinados grupos sociais,4 esse fenômeno não instaura uma crise epistemológica.

Defendemos que as crises relativas ao conhecimento existentes na sociedade contemporânea se inscrevem dentro das práticas sociais que as originam. Não podemos esquecer que desde sua origem a ciência está em constante disputa sobre a interpretação do real com outras esferas de produção ideológicas, as mais famosas são as contradições com a religião e a própria ciência em momento de superação de uma interpretação por outra. Por isso, não é o surgimento de uma ou outras teorias anticientíficas que conseguirá obliterar imediatamente o valor social e a credibilidade da ciência e da tecnologia na sociedade.

Outro fator que é fundamental para a credibilidade científica é sua objetividade, assunto que é controverso e, por vezes, confundido com a neutralidade científica. Se a falácia da neutralidade científica é algo majoritariamente consensuado pela comunidade científica, a objetividade ainda não. Duarte, Massi e Teixeira esclarecem que “o conhecimento científico não precisa abdicar da objetividade para fundamentar posicionamentos éticos e políticos diante dos problemas que afligem a humanidade hoje” [Duarte, Massi & Teixeira, 2022, p. 1631]. A questão central é que a objetividade do conhecimento científico não implica neutralidade política e ideológica. Os autores propõem o conceito de objetividade empenhada (tradução livre), que se refere à unidade dialética estabelecida pela objetividade e pelo posicionamento ético e político do conhecimento científico.

De acordo com o materialismo histórico e dialético “a natureza do mundo é independente das ideias de um observador sobre ela, e é isso que explica tanto a adequação e falibilidade do nosso conhecimento, como se encontra” [Sayer, 2010, p. viii, tradução livre]. Importante ressaltar que a negação da objetividade do conhecimento implica, em última instância, abdicar a inteligibilidade do real, pois se não é possível produzir conhecimento objetivo isso significa que é impossível compreender a realidade; condição que a própria história da humanidade nega. O caminho pelo qual compreendemos a objetividade não é a lógica formal, mas a lógica dialética que compreende a contradição como uma lei fundamental de todos os fenômenos e o motor para seu desenvolvimento [Ilyenkov, 2014]. Podemos entender que o conhecimento é produzido em meio a uma unidade dialética entre objetividade e subjetividade, ao passo que o conhecimento científico busca se aproximar ao máximo da objetividade no sentido de produzir uma representação mais fidedigna possível do real, conforme as condições históricas de sua produção. Isso não significa defender uma verdade absoluta e imutável, Lefebvre [1991, p. 95] destaca que:

A verdade e o erro não são abstratamente separados, nem separáveis. Deve-se afirmar que há verdade e que há erro; mas que eles se modificam, tal como se modifica o próprio real. A verdade se torna erro; o erro se torna verdade…

Um erro pode ser uma verdade parcial, o aspecto de uma verdade ou uma verdade levada além dos limites nos quais é verdade. Em certos limites, voltamos a repeti-lo, a oposição entre verdade e erro é absoluta, e, por essa razão mantemos a distinção entre eles, bem como a ideia de uma verdade objetiva. Mas fora de tais limites, fora do domínio indicado, fora do momento determinado da história e do pensamento, a oposição se torna relativa e a verdade se transforma em erro (e vice-versa).

Essa objetividade, que é determinada historicamente conforme a capacidade de produção humana, é uma das responsáveis pelo estabelecimento da credibilidade social atribuída à ciência e à tecnologia.

Ao longo dos anos, a ciência aparece como o meio mais confiável pelo qual podemos investigar os acontecimentos do cosmo e adquirir conhecimento verdadeiro, prático e objetivo sobre eles. O conhecimento científico se distingue das demais formas de conhecimento por diversos fatores, dentre eles, a passagem pelo processo mais criterioso de julgamento e validação. Numa situação de calamidade pública de saúde, o percurso para combater a doença é (ou, ao menos, deveria ser) ditado pela ciência, já que por repetidas vezes seus métodos se provaram eficazes, inclusive no combate à covid-19, como a quarentena, máscaras e vacinas.

A partir dessas considerações, entendemos que o uso inadequado do conhecimento científico pode contribuir com maior aceitação de mensagens falsas devido ao valor da ciência e da tecnologia na sociedade contemporânea.

Em meio à pluralidade de abordagens para compreender a infodemia, o uso inadequado do conhecimento científico foi pouco analisado. Os principais temas que foram abordados pela investigação científica foram: os meios de circulação das mensagens [Pereira & Coutinho, 2022]; as interações entre pandemia e concepções político-ideológicas [Calvillo et al., 2020] e as percepções sobre covid-19 [Massarani et al., 2021]. Sendo assim, este artigo busca contribuir para a discussão sobre como o conhecimento científico e tecnológico é usado na tentativa de manipular os interlocutores de mensagens falsas.

3 Métodos

Este trabalho apresenta uma investigação que visa compreender, por meio da análise de conteúdo e da estatística descritiva, a incorporação de aspectos científicos e tecnológicos na composição de mensagens falsas sobre a pandemia. Estamos considerando que aspectos científicos e tecnológicos é qualquer conteúdo que faça menção à conceitos, práticas, sujeitos, instituições ou resultados científicos e tecnológicos.

Para analisar como as mensagens falsas se apropriaram de aspectos da cultura científica e tecnológica, essa pesquisa contou com um conjunto de dados disponibilizados por Latam Chequea Coronavírus, que é uma rede internacional de colaboração entre agências de fact-checking de países ibero-americanos. A partir dessas informações, foi montado um banco de dados com 838 mensagens falsas que foram verificadas pelas seguintes agências: Agência Lupa, Aos Fatos, Estadão e AFP; entre 02 de janeiro de 2020 até 04 de dezembro de 2020.

Preliminarmente, foi realizada uma análise para suprimir mensagens repetidas, isto é, mensagens que foram verificadas por mais de uma agência, algo que foi recorrente. Após essa seleção, o conjunto de dados se consolidou com 473 mensagens. Em seguida, as mensagens foram registradas em nosso banco de dados por meio de sua extração da plataforma de veiculação (geralmente mídias sociais e blogs), sendo que mensagens não encontradas em seu local de origem só foram integradas quando elas foram disponibilizadas na íntegra pela agência verificadora. Essa medida buscou mitigar a influência das apreciações das agências verificadoras de fatos

Ressalta-se que este trabalho compõe uma investigação mais ampla, que analisou as mensagens tematicamente,5 tipologicamente [Tandoc Jr. et al., 2018] e como mobilizaram técnicas de persuasão [Levitskaya & Fedorov, 2020]. Os temas considerados foram:

  • “Ação/Política de autoridade pública”: alegações sobre ações tomadas ou políticas implementadas por autoridades públicas (políticos, organizações governamentais, representativos de estado, etc.).

  • “Atores proeminentes”: alegações sobre pessoas famosas (celebridades, políticos, etc.) ou empresas relacionadas à pandemia.

  • “Características do vírus”: mensagens sobre características biológicas do vírus.

  • “Conspirações”: teorias da conspiração relacionadas à pandemia e temas relacionados (métodos de prevenção, vacinas, interesses de certos grupos ou nações, etc.).

  • “Explicações da origem do vírus”: alegações sobre a origem do vírus.

  • “Isolamento social”: mensagens sobre o isolamento social, seja como método de prevenção pública ou individual, e seus impactos.

  • “Pânico”: mensagens com a intenção de provocar medo ou pânico.

  • “Política”: mensagens sobre decisões ou aplicação de políticas relacionadas à pandemia, sejam elas de estado, organizações ou empresas.

  • “Prevenção pública”: alegações sobre métodos de prevenção pública e seus impactos.

  • “Profilaxia e cura”: mensagens que mencionam ou tratam sobre métodos de prevenção ou cura da doença.

  • “Propagação comunitária”: alegações sobre como o vírus estava se propagando dentro de um território ou sobre indivíduos ou grupos específicos afetados pela doença.

  • “Sintomas”: alegações sobre sintomas causados pela doença.

  • “Vacina”: alegações sobre as vacinas, seus métodos de produção, distribuição ou efeitos colaterais.

  • “Vírus foi previsto”: mensagens que afirmam que o vírus foi previsto no passado.

  • “Xenofobia”: mensagens baseadas em discurso de ódio ou estereótipos sobre pessoas ou culturas estrangeiras.

Para a análise da tipologia usamos a classificação de Tandoc Jr. et al. [2018], que indicou seis categorias, explicadas por Andrade et al. [2023, p. 557] da seguinte maneira:

Fabricação: fabricação de falsos fatos. Ausência de base factual para criar legitimidade.

Manipulação de foto ou vídeo: edição ou descontextualização de fotos e vídeos.

Paródia: inclui humor a partir de fatos falsos e conteúdo fabricado.

Propaganda: baseada em fatos, mas descontextualizando ou omitindo parte da informação. Busca persuadir, não informar.

Publicidade: falsos anúncios (apenas baseados em veículos oficiais) que podem trazer retorno financeiro para alguma empresa ou organização.

Sátira: promove crítica política, econômica e social. É baseada em fatos reais

Por fim, as técnicas de persuasão que classificamos, como de acordo com as definições de Levitskaya e Fedorov [2020], foram:

  • “Alternativa falsa”: apresenta duas ou mais opções de forma desbalanceada, direcionando a audiência a um lado específico.

  • “Apelo à autoridade/Competência”: se baseia na competência, cargo (médico, cientista, etc.) ou organização (treinamento, área de trabalho, etc.) de uma pessoa.

  • “Apelo à autoridade/Personalidades ou organizações renomadas”: se baseia no renome de uma pessoa ou organização.

  • “Apelo emocional”: se baseia nas emoções básicas da audiência (ódio, medo, esperança, etc.) para convencê-la.

  • “Humor”: se baseia no humor.

  • “Parasitismo conceitual”: se baseia em conceitos sociais genéricos (patriotismo, conservadorismo, comunismo, etc.), conectando esses conceitos a um objeto ou à mensagem em si.

  • “Representação falsa”: distorce e atribui falas ou posicionamentos de uma pessoa ou organização.

  • “Rotulação”: atribui características falsas ou qualifica a uma pessoa ou organização.

  • “Senso comum”: se baseia em mitos ou estereótipos difundidos socialmente.

  • “Uso inadequado de conhecimento científico”: se baseia em conceitos, autoridades ou linguagem técnica e científica (cientistas, artigos, termos técnicos, etc.).

Ressaltamos que as categorias temáticas e de técnicas de persuasão não são mutuamente excludentes, portanto, uma mensagem pode conter múltiplos temas e diversas técnicas de persuasão. Após a classificação das 473 mensagens do banco de dados, este trabalho focou no recorte das mensagens que apresentavam o uso inadequado do conhecimento científico como técnica de persuasão, condição que resultou em 152 mensagens que foram analisadas. Vale ressaltar que essa seleção já apresenta um resultado relevante para a compreensão das características das mensagens falsas que circularam no Brasil, a saber: 32,14% das mensagens falsas que circularam no Brasil incorporaram aspectos da ciência e da tecnologia em seu conteúdo.

Em seguida, investigamos a frequência tipológica, temática e da incorporação das técnicas de persuasão. Ainda que do ponto de vista metodológico as técnicas aplicadas sejam descritivas, os resultados decorrentes apresentam um panorama relevante para compreender o complexo fenômeno da produção de informações falsas, cujo tema (pandemia) é científico. Esses resultados podem subsidiar investigações mais profundas a respeito da incorporação de aspectos da cultura científica nas mensagens falsas, e como isso pode influenciar na produção do efeito de legitimidade dessas mensagens.

Após o processo de categorização das mensagens falsas, os dados foram agrupados e analisados a partir de uma planilha, que fundamentou a elaboração de gráficos para melhor visualização dos resultados e das análises.

Para aprofundar as análises, selecionamos mensagens que congregam características típicas de determinados temas e técnicas de persuasão para compreender como os aspectos científicos e tecnológicos foram articulados na mensagem falsa. Essas análises são exemplos que apresentamos visando mostrar como as técnicas de persuasão são mobilizadas nas mensagens. Para essa análise, foram consideradas a composição verbo-visual da mensagem falsa, primeiro para identificar as características relativas à cultura científica e tecnológica e depois para compreender como essas características, seja em associação ou não com outras técnicas de persuasão, contribuem para o efeito de legitimidade e credibilidade.

4 Análises

Em posse dos resultados, notamos que as mensagens falsas foram caracterizadas predominantemente como boatos (127 — 83,55%) e apenas 16,45% delas são notícias falsas propriamente ditas. Sendo assim, mensagens falsas com elementos científicos e tecnológicos não implicam necessariamente na apropriação estrutural característica das notícias falsas, ou seja, o efeito de legitimidade é almejado mesmo sem a tentativa de usurpar a legitimidade de um veículo de comunicação.

A Figura 1 apresenta como as mensagens que incorporaram aspectos da ciência e da tecnologia se organizam por tipo.

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Figura 1: Tipos das mensagens falsas.

A Figura 1 nos mostra que a fabricação de informações é o principal tipo de mensagem falsa que incorpora aspectos da cultura científica e tecnológica. Esse resultado pode ser analisado em correlação com a predominância de boatos, uma vez que a alta porcentagem de ambos pode indicar uma substituição dos elementos capazes de produzir o efeito de legitimidade.

As mensagens a seguir (Figura 2 e Figura 3) apresentam dois exemplos de fabricação de informações com a incorporação de aspectos da cultura científica e tecnológica.

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Figura 2: Mensagem falsa 1059 no banco de dados.

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Figura 3: Mensagem falsa 880 no banco de dados.

A mensagem da Figura 2 é considerada como boato, pois não replica características comunicativas dos veículos de comunicação ou mídias oficiais, ao contrário da Figura 3, que é classificada como notícia falsa, ainda que não usurpe de um veículo de comunicação popular. Na Figura 3, é explícita a tentativa de se passar por veículo de comunicação hospedado na internet, basta ver a composição verbo-visual e esquemática, que é comumente usada por plataformas de notícias.

Ressalta-se que nesses casos houve a fabricação das informações. No primeiro caso há produção explícita de conteúdo, deturpando inclusive o agente causador da doença, o coronavírus, já que a mensagem alega que a doença é causada por uma bactéria. No segundo caso, há produção de conteúdo por meio da deturpação e inclusão de informações falsas num estudo científico.

Além disso, ambas foram produzidas com técnicas de persuasão baseadas no apelo à autoridade (Ministério da Saúde e Harvard) que representam instituições científicas e tecnológicas, ainda que em instâncias distintas, uma na política e outra na produção e disseminação do conhecimento científico. Em acréscimo, ambas mensagens também usaram a representação falsa, por distorcer e atribuir o conteúdo às instituições mencionadas.

Pondo em evidência o uso inadequado do conhecimento científico dentre as demais técnicas de persuasão, fizemos cruzamento para evidenciar como as temáticas foram mobilizadas para a composição do conteúdo das mensagens falsas, tal como apresentado na Figura 4:

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Figura 4: Frequência dos temas das mensagens que incorporaram aspectos científicos e tecnológicos.

Os resultados na Figura 4 explicitaram que a maioria das mensagens (81,58%) continha mais de um tema. Na composição temática das mensagens falsas, sobressaíram aquelas relacionadas à profilaxia e cura (82,89% das mensagens), prevenção pública (50,66% das mensagens) e propagação comunitária (39,47% das mensagens). Esse resultado dialoga com as considerações de Barcelos et al. [2021], quando alegam que as notícias falsas que circularam no Brasil durante os primeiros meses da pandemia são principalmente de cunho político, desinformação sobre número de casos e óbitos e medidas de prevenção e tratamento. Os assuntos mencionados por Barcelos e Muniz estão dentre os 5 principais assuntos que encontramos nas mensagens durante o primeiro ano da pandemia.

Importante ressaltar a baixa presença da temática vacina (16,45%) na amostra analisada. Entendemos que isso pode ser explicado devido ao recorte temporal, que limitou o registro de dados (de 02 de janeiro de 2020 até 04 de dezembro de 2020). Galhardi, Freire, Fagundes, Minayo e Cunha [2022] mostraram que o tema vacina passou a ter presença significativa nas mensagens falsas que circularam no Brasil a partir de novembro de 2020.

Ao fazer o cruzamento com as técnicas de persuasão encontramos o seguinte resultado:

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Figura 5: Frequência de uso de técnicas de persuasão nas mensagens falsas que fazem uso de aspectos da cultura científica e tecnológica.

A Figura 5 mostra a incorporação das técnicas de persuasão. Os resultados indicam que o apelo à autoridade, especificamente relacionados a personalidades e organizações renomadas (61,84%) e à competência dos profissionais, sejam eles médicos, cientistas ou outro agente da produção científica (51,97%) e o apelo emocional (45,39%) aparecem com mais frequência nas mensagens em questão.

Ressaltamos que apenas duas mensagens analisadas apresentam somente uma técnica de persuasão. Os resultados indicaram que 98,68% das mensagens que usaram aspectos da ciência e da tecnologia, combinam essa técnica de persuasão com alguma outra. Nos parece que a busca pelo efeito de legitimidade se fundamenta na diversificação estratégica para persuadir o interlocutor.

Nossas análises indicaram que o conhecimento científico foi usado, deturpado ou descontextualizado, de modo a oferecer falsas premissas de cura e informações errôneas sobre prevenção e propagação do vírus. Adicionalmente, a ciência e a tecnologia foram usadas tanto na composição verbal quanto visual da imagem. A seguir apresentamos alguns exemplos em que foram analisadas tanto as temáticas quanto às técnicas de persuasão.

A mensagem da Figura 6 foi caracterizada como boato por não emular veículos de notícias. Nela percebemos o uso do conhecimento científico associado ao senso comum como técnica de persuasão. O assunto principal é a profilaxia e cura, que está associado à prevenção pública, de modo que o conteúdo da mensagem mescla informações validadas cientificamente: como usar álcool, lavar as mãos e evitar multidões; e informações falsas, pois não há evidências científicas de que tomar vitamina C, tamiflu, chá ou comer fígado de boi previne a doença. As informações científicas falsas fazem referência ao medicamento e ao mesmo tempo buscam usurpar sentidos que compões o senso comum, baseados no uso de chás e ingestão de alimentos popularmente conhecidos como saudáveis.

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Figura 6: Mensagem falsa 657 no banco de dados.

É importante ressaltar que as informações presentes na caixa abaixo da palavra erva-doce, não cita explicitamente o coronavírus ou a covid-19, mas o vírus H1N1, a gripe A e a influenza. Todavia, o título da mensagem: “Orientações de prevenção ao coronavírus” induz uma interpretação de que os mesmos medicamentos usados para o tratamento de uma doença poderiam ser usados para a covid-19. Essa tentativa de induzir a interpretação do interlocutor pode ter sido mais eficiente em pessoas e grupos que acreditaram ou associaram a covid-19 à gripe (ou gripezinha) tal como muito difundido falsamente por alguns grupos sociais no Brasil. Assim, a mensagem falsa tenta usurpar tanto o valor social da ciência quanto o valor social do senso comum buscando produzir o efeito de legitimidade do conteúdo.

Diferentemente da Figura 6, a figura seguinte se apoia no apelo à autoridade por competência, já que alega que um médico infectologista confirmou que o vírus pode ser encontrado em materiais inorgânicos como papel e tecido.

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Figura 7: Mensagem falsa 676 no banco de dados.

A temática central aborda as características do vírus (condições de sobrevivência) que está associada à disseminação do pânico. O apelo emocional acompanha a mensagem ao colocar o cliente que compra na internet em posição passiva, como em “Diariamente, centenas ou até milhares de brasileiros esperam pacientemente suas compras de sites como AliExpress, Wish e Lightinthebox.”. Ademais, atribui características falsas ao vírus, dizendo que ele pode sobreviver fora de outro organismo por períodos grandes de tempo e em superfícies sólidas. Tais informações associadas podem instaurar pânico, já que compras em sites chineses são comuns no território nacional, além do fato de grande parte dos produtos industrializados serem produzidos na China.

As quatro mensagens apresentadas evidenciam de forma explícita em sua composição verbal o uso inadequado do conhecimento científico. Ressalta-se que muitas das mensagens falsas que usufruem dessa técnica de persuasão são compostas por conteúdos verbo-visuais, tal como acontece nas mensagens apresentadas pelas Figuras 6 e 7. A mensagem da Figura 6 é composta por uma imagem que faz referência ao processo de testagem para a verificação da doença, composta por tubos de coleta de sangue no fundo e um tubo indicando positivo para covid-19 segurado por uma mão com luvas. A Figura 7 mostra um paciente, supostamente infectado por covid-19 sendo transferido de ambiente em uma maca acompanhado por diversos profissionais da saúde.

Ressaltamos que imagens que indicam ambientes hospitalares e pesquisas científicas foram frequentes nas mensagens analisadas. Isso fortalece nossa interpretação de que os autores das mensagens falsas buscam se apropriar da imagem social da ciência e da tecnologia na composição do conteúdo, especialmente por considerar que essas imagens ajudam a aumentar o efeito de legitimidade da mensagem falsa.

Visando contemplar os três assuntos mais comuns que se apoiaram no uso inadequado do conhecimento científico, a seguir apresentamos um exemplo de mensagem com o tema de prevenção pública.

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Figura 8: Mensagem falsa 1177 no banco de dados.

A mensagem apresentada na Figura 8 é uma notícia falsa produzida para o twitter. Nota-se a referência ao portal de notícias Agora Paraná, bem como a referência @oswaldojor, sujeito que, inclusive foi preso e teve suas contas retidas em 2020 por determinação do STF devido a investigação de organização e financiamento de atos antidemocráticos. De toda forma, a mensagem tenta se passar por mídia oficial, portanto uma notícia falsa. O conteúdo central da mensagem aborda a temática propagação comunitária e prevenção pública, indicando que as medidas do governo Bolsonaro foram eficazes no combate à doença (profilaxia e cura). Ao mesmo tempo que a mensagem se apoia na crítica antiestablishment, por meio da crítica ao maior conglomerado de imprensa brasileiro, o grupo Globo, ela se apropria da imagem de profissionais da saúde que pelo contexto parecem felicitar um paciente recuperado de covid-19. A crítica ao grupo Globo suscita, também, o apelo emocional devido ao reconhecimento de vários setores da população de que ele é parcial na cobertura midiática.

É importante frisar que o conteúdo comunicado em si é verdadeiro, mas descontextualizado. Em maio de 2020, o Brasil provavelmente tinha um dos maiores números de curados da doença, ao mesmo tempo em que era um dos países com maior número de infectados. Considerando que a taxa de letalidade é 1,9%, os países mais afetados pela doença provavelmente terão o maior número de curados. Portanto, a mensagem tenta se apropriar de uma informação, para produzir um sentido específico, a saber: as políticas públicas do governo brasileiro são adequadas para a pandemia; fato que era falso.

A seguir apresentamos um último exemplo para contemplar o apelo a autoridade, no caso de figuras públicas.

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Figura 9: Mensagem falsa 1091 no banco de dados.

A Figura 9 apresenta uma mensagem com dados vinculados às secretarias estaduais de saúde (que além de representarem a ciência, registra dados de acordo com essa esfera do conhecimento). A mensagem tem como temática a propagação comunitária e a prevenção pública. É importante ressaltar que mesmo que os dados sejam verídicos, a mensagem induz uma interpretação incorreta da realidade. A mensagem omite informações essenciais como o fato da população e densidade demográfica de São Paulo serem duas e cinco vezes maior que a de Minas Gerais, respectivamente, bem como o fato de os paulistas terem sido acometidos pela doença 11 dias antes dos mineiros. Ainda que pareça poucos dias, a explicação da diferença entre o número de mortos é encontrada ao considerar a propagação exponencial da pandemia nas primeiras semanas, o tamanho da população e a densidade demográfica de cada estado. É evidente que a mensagem mobiliza o apelo à autoridade (dois governadores, um aliado e outro oponente de Bolsonaro) e o apelo emocional, já que busca causar a revolta do interlocutor, indiciando que não é necessário isolamento social para a contenção da doença. Em síntese, a mensagem apresenta determinadas informações ao mesmo tempo que oculta outras, no sentido de induzir a interpretação desejada de que o isolamento social não é necessário para o controle da pandemia.

Após as análises, parece correto destacar que a disseminação em grande escala dessas informações falsas e/ou descontextualizadas mostra, à primeira vista, que a técnica de persuasão “uso inadequado do conhecimento científico” explora o domínio científico precário da população; isto é, uma exploração que se pauta em baixos níveis de formação científica. De forma alguma, compactuamos com a ideia de que o sujeito que é enganado pelas mensagens falsas tenha alguma parcela de culpa. Nos parece mais correta a interpretação de que os produtores das mensagens falsas sobre a pandemia se aproveitam da vulnerabilidade social de diversos grupos, da precária formação científica e da urgência do desejo de profilaxia e cura para induzir e orientar a população a determinadas práticas sociais que atendam os interesses de seus grupos.

Os resultados apresentam que das 152 mensagens que mobilizam algum aspecto do conhecimento científico, 124 (81,58%) são compostas por mais de uma temática. Vijaykumar et al. [2021] ressaltam que sujeitos expostos a informações completamente falsas tendem a reconhecer sua falsidade, mais do que os expostos a mensagens parcialmente falsas. Num esforço para fazer com que a mensagem seja mais aceita pelo leitor, os autores das mensagens falsas, frequentemente, colocam conteúdo verdadeiro para mascarar as falsidades. Os dois últimos exemplos mostrados (Figura 9) explicita como é possível usar informações verdadeiras para produzir desinformação.

Ressaltamos que tanto a mensagem da Figura 8 quanto a mensagem da Figura 9 articularam as temáticas prevenção pública, profilaxia e cura e propagação comunitária. A Figura 8 apresentou informações parciais sobre propagação comunitária (número de curados), associando-a ao tema prevenção pública (uso de cloroquina) para induzir uma interpretação falaciosa sobre profilaxia e cura (cloroquina cura a doença). Em seu turno, a mensagem da Figura 9 apresenta informações corretas referentes à propagação comunitária (número de infectados) para associá-la a uma determinada política de prevenção pública (instituição do isolamento social), que por sua vez questiona a prática de isolamento como profilaxia da doença.

De modo geral, as mensagens produzem conteúdo com a articulação de conceitos científicos (vírus, bactéria, trombose, diversos fármacos, protocolos de tratamento etc.), no caso um conteúdo que foi deturpado e não possui relação entre o conceito usado e o objeto ao qual faz referência. Portanto, podemos entender que o principal aspecto relativo ao uso do conhecimento científico foi a negação da sua objetividade. As mensagens falsas usaram a cultura científica no sentido de estabelecer seus saberes exclusivamente do ponto de vista subjetivo, dando pouca ou nenhuma importância para a relação que determinado conceito ou prática científica tem com a realidade.

Esses exemplos, associados aos demais, mostram que a multiplicidade de temáticas em uma mesma mensagem contribui para induzir a interpretação do interlocutor. Com isso, a mensagem pode se basear em informações verídicas sobre um tema, sejam elas parciais ou não, para associá-las a interpretações ou informações falsas de outro tema. Esse resultado mostra que a interpretação das mensagens falsas muitas vezes são fruto de análises dos interlocutores. Isso indica que o processo de desinformação não é produzido por fraudes explícitas e factuais, ainda que elas possam existir, mas atividades comunicativas que conduzem as análises e induzem as interpretações dos sujeitos.

5 Considerações finais

Este trabalho visou compreender as relações internas nas mensagens falsas sobre a pandemia, buscando entender como as mensagens falsas usam aspectos da cultura científica e tecnológica na composição do conteúdo. Para isso, a investigação analisou 152 mensagens falsas que apresentaram o uso inadequado do conhecimento científico e tecnológico como técnica de persuasão.

As análises mostraram que a grande maioria das mensagens falsas foram consideradas boatos (83,55%), portanto não tentam se passar por um veículo de comunicação oficial. Em acréscimo, 81,58% das mensagens falsas foram compostas por mais de uma temática, de modo que os temas: profilaxia e cura (82,89%), prevenção pública (50,66%) e propagação comunitária (39,47%) foram os mais comuns que incorporam aspectos da cultura científica e tecnológica. Complementarmente, 98,68% das mensagens continham mais de uma técnica de persuasão, sendo o apelo à autoridade, seja de personalidades ou organizações renomadas (61,84%) seja por competência profissional (51,97%), e o apelo emocional (45,39%) as que mais foram associadas ao uso do conhecimento científico e tecnológico.

Ressalta-se que as mensagens falsas eram predominantemente verbo-visuais e buscaram usurpar o valor social da ciência e da tecnologia. Portanto, para além do texto que faz referência à ciência e à tecnologia, muitas mensagens incorporam imagens que apresentam elementos relativos à cultura científica e tecnológica, como testes clínicos, imagem de profissionais da saúde, cientistas, etc.

As análises também apresentaram exemplos de como as mensagens falsas articularam os temas e as técnicas de persuasão. De modo que é preciso destacar produções comunicativas que vão para além da simples apresentação da mentira. As análises mostraram que o conteúdo falacioso também se apropria de informações verdadeiras, contudo os autores das mensagens falsas omitem informações essenciais para a compreensão do fato/fenômeno comunicado e lançam estratégias para induzir o interlocutor a uma interpretação falsa. De forma mais específica, algumas mensagens usam informações corretas e parciais de um tema para produzir informação falsa sobre outro tema.

Os resultados também apresentaram a participação de grupos bolsonaristas na criação de conteúdo falso sobre a pandemia. Tal resultado, indica a necessidade de maior investigação sobre a relação do bolsonarismo com a produção de mensagens falsas sobre a pandemia, ainda mais se considerarmos que outras investigações também indicam que as mensagens falsas foram usadas pelo bolsonarismo como estratégia retórica para atenuar a situação da crise pandêmica [Moraes & Silva, 2021]. Ressalta-se que compreender as relações entre a incorporação de aspectos da cultura científica e tecnológica em mensagens falsas criadas por grupos bolsonaristas, pode trazer contribuições relevantes para compreender a produção e manutenção da desinformação sobre determinado tema, especialmente se considerarmos que é um grupo fortemente influenciado pelo negacionismo científico [Duarte & Benetti, 2022].

Por fim, parece-nos correto afirmar que a imagem dos conhecimentos, das práticas e dos agentes científicos e tecnológicos foram apropriados pelos produtores de desinformação para usurpar o valor da ciência e da tecnologia como mecanismo de promover o efeito de legitimidade e credibilidade. Contudo, essa apropriação é realizada de forma deturpada. Ao alterar ou manipular os conhecimentos, as práticas e a figura dos agentes da ciência e da tecnologia, as mensagens falsas agem na contramão de ações que comprovadamente salvam vidas. Sendo assim, as mensagens falsas sobre covid-19 tiveram o potencial de reduzir a adesão da população a métodos e práticas comprovados cientificamente que contribuiriam no combate à pandemia.

Agradecimentos

Agradecemos a Universidade Federal de Ouro Preto pelo financiamento concedido através do edital PIP-1S/UFOP N°14/2021.

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Autores

Lucas Dias Queiroz é graduando em Física na Universidade Federal de Ouro Preto.
E-mail: lucasdqueiroz1@gmail.com

Guilherme da Silva Lima é Docente da Universidade Federal de Minas Gerais e tem como principal objeto de pesquisa a divulgação científica. Licenciado em Física pela UNESP (2007), Mestre em Educação pela UNESP (2010), Doutor em Educação pela USP (2016) e Pós-doutor em Educação na UFMG (2020).
E-mail: guilima@ufmg.br

Notas

1Este trabalho padronizou o termo ‘mensagens falsas’ para se referir a todo e qualquer processo comunicativo que visa promover a desinformação, enquanto que o termo notícia falsa foi usado exclusivamente para fazer referência a mensagens que reproduzem atributos da mídia oficial conforme a definição de Tandoc Jr., Lim e Ling [2018].

2Termo cunhado pela Organização Mundial da Saúde (OMC) para fazer referência ao grande fluxo de mensagens sobre a pandemia de covid-19, num curto período.

3Evidentemente que defendemos uma interpretação crítica da Ciência e da Tecnologia, entretanto uma vasta discussão sobre isso nos afastaria do escopo deste trabalho. Ressalta-se que, entre os avanços e retrocessos, é evidente que a ciência e a tecnologia contribuíram com a elevação da qualidade de vida da humanidade.

4É preciso destacar também que muitas concepções negacionistas existem há décadas ou mesmo há milênios, como o criacionismo nos grupos religiosos.

5Para a análise temática fizemos uma síntese das produções sobre o tema presentes na literatura. Os resultados dessa categorização podem ser vistos detalhadamente em Andrade et al. [2023].