1 Introdução

A ciência ocupa lugar importante na sociedade por sua capacidade de solucionar problemas [Dijkstra et al., 2020]. Porém, é crescente a percepção de que as soluções não devem ser construídas apenas por cientistas, mas envolver a sociedade. “Membros do público em geral, às vezes chamados de leigos, podem fornecer insights compartilhando seu conhecimento local e experiencial” [Dijkstra et al., 2020]. Iniciativas de divulgação científica (DC) podem aproximar e facilitar o diálogo entre cientistas e público geral, contribuindo para a construção cooperativa de soluções.

Nesse sentido, uma iniciativa de DC pode constituir um projeto social, compreendido como “um planejamento para solucionar um problema ou responder a uma carência social” [Campos et al., 2002, p. 17]. Um projeto social é “uma das soluções técnicas mais difundidas para que as pessoas e as organizações possam contribuir com o enfrentamento de problemas sociais de uma forma organizada, ágil e prática” [Armani, 2009, p. 18].

Uma iniciativa de DC, portanto, pode se beneficiar das técnicas e ferramentas da gestão de projetos sociais. Isso é o que o presente estudo busca demonstrar a partir de um relato de experiência. A abordagem é inovadora, pois os manuais de DC, como Vieira [2004] e Chagas e Massarani [2020], não enfatizam aspectos da gestão, que costuma ser mais discutida em contexto empresarial [Martins et al., 2013].

O presente artigo descreve e analisa, com base em literatura sobre gestão de projetos sociais, um evento de DC que celebrou o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência na Fiocruz Brasília. Um problema histórico e persistente enfrentado pela sociedade são as desigualdades de gênero, que se expressam em todos os âmbitos, inclusive na ciência.

A participação de mulheres na ciência tem crescido no Brasil. Se, em 2002, 38% das publicações científicas brasileiras tinham, pelo menos, uma autora mulher, esse percentual subiu para 49%, em 2022 [Elsevier & Agência Bori, 2024]. Entretanto, essa participação feminina vai diminuindo durante a carreira: de 2018 a 2022, mulheres com até cinco anos de carreira foram autoras ou coautoras em 51% das publicações científicas, enquanto esse percentual foi de apenas 36% para mulheres com mais de 21 anos de carreira [Elsevier & Agência Bori, 2024], o que indica barreiras para que elas permaneçam ativas na ciência. Dados sobre bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) apontam na mesma direção: 58% são mulheres, mas, quando se olha para as bolsas de maior produtividade de pesquisa, esse percentual cai para 25% [Madureira, 2022].

Para a elaboração deste relato sobre o evento intitulado Converse com(o) uma cientista, foram utilizados arquivos com registros do planejamento da iniciativa, fichas de inscrição, listas de presença, matérias no site institucional e questionários de avaliação, bem como observações diretas antes, durante e após o evento. A autora do artigo foi idealizadora e coordenadora da atividade, tendo total envolvimento com o objeto de estudo, sob risco de uma análise mais subjetiva e menos neutra. No entanto, enunciar essas condições de produção do estudo não deslegitima o conhecimento produzido e aqui apresentado. “É preciso desnaturalizar a imposição de que a ciência exige distanciamento do objeto, sob pena de banirmos da comunidade científica os trabalhadores-pesquisadores e seus problemas cheios de vida” [Penido, 2020, p. 393].

O presente estuda busca estabelecer conexões entre a DC e a gestão de projetos sociais. O artigo descreve o passo a passo de um evento de DC e identifica pontos em que a devida aplicação dos fundamentos da gestão de projetos sociais poderia ter contribuído para um melhor desempenho da iniciativa. Esse exame possibilita conhecer aspectos para o aperfeiçoamento de projetos de DC.

2 Alguns apontamentos sobre DC

Quando se aborda a relação entre ciência e sociedade, depara-se com uma “selva conceitual” [Alcíbar, 2015], na qual se insere a definição de DC. Ao se dirigir a um público não iniciado ou não familiarizado com a ciência e seus processos, a DC faz uma recodificação do discurso científico, utilizando variados recursos e estratégias, com o intuito de democratizar o conhecimento científico e “incluir os cidadãos no debate sobre temas especializados e que podem impactar sua vida e seu trabalho” [Bueno, 2010, p. 5].

A forma como se dá essa ‘inclusão’ pode variar desde um modelo de déficit ou unidirecional — em que o conhecimento científico é transmitido pela autoridade científica para um público que o absorve passivamente — até um modelo em que o público tem um papel mais participativo e crítico [Alcíbar, 2015; Massarani, 2012]. O modelo de engajamento público ou do diálogo "tem como objetivo ampliar o papel do público nas questões relacionadas à ciência. A nosso ver, para visar uma real apropriação social da ciência, é fundamental dar um papel protagonista do público"[Massarani, 2012]. Esta abordagem corresponderia melhor às necessidades do público, na medida em que ele pode não querer ser ensinado sobre um tema, mas tão somente apropriar-se daquilo que pode ser útil no seu cotidiano [Alcíbar, 2015].

O evento Converse com(o) uma cientista foi proposto na perspectiva dialógica. Muitas meninas, sobretudo as das periferias, não têm acesso direto a instituições de pesquisa, tampouco às pesquisadoras que lá trabalham. Além disso, as imagens de cientistas exibidas na mídia reforçam a representação de pesquisadores homens. Dessa forma, privadas de fontes de inspiração, as meninas encontram barreiras até para sonharem com carreiras científicas e imaginarem a possibilidade de se tornarem pesquisadoras [Massarani et al., 2024].

Promover o diálogo entre pesquisadoras e meninas, com potencial impacto na percepção dessas meninas sobre ter um lugar na ciência, era a intenção do evento Converse com(o) uma cientista. Porém, muitas atividades que se propõem dialógicas podem, na prática, conservar características do modelo de déficit [Alcíbar, 2015]. Analisar o evento Converse com(o) uma cientista sob a ótica da gestão de projetos sociais possibilita avaliar sua dimensão dialógica, na medida em que um projeto social é um trabalho que articula diversos atores para o alcance de objetivos compartilhados [Stephanou et al., 2003].

3 Desenvolvimento

3.1 Descrição de um projeto social em DC

Desde 2019, a Fiocruz Brasília realiza ações para celebrar o Dia Internacional das Mulheres e Meninas (11 de fevereiro). Em 2023, foi proposto um evento que colocasse meninas em diálogo direto com pesquisadoras, da forma mais horizontal possível, durante um lanche (Tabela 1). A ideia era que as pesquisadoras, com suas diversas trajetórias pessoais e profissionais, ilustrassem os variados caminhos do tornar-se mulher cientista, enfatizando que “não se trata de acaso, sorte ou, ainda, de mentes excepcionalmente brilhantes, mas de oportunidade, trabalho duro e apoio” [Chagas & Massarani, 2020, p. 128]. A proposta incluía a materialização do diálogo sob a forma de um painel ilustrado que sintetizasse o que é ser mulher na ciência na visão coletiva de pesquisadoras e adolescentes, representando uma conexão entre conhecimentos científicos e populares.

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Tabela 1: Principais informações registradas do planejamento do evento Converse com(o) uma cientista.

Por falta de tempo e recursos, algumas das ideias iniciais (Tabela 1) não foram executadas, como a divulgação do evento na rodoviária e o convite a pesquisadoras de fora do DF. Foi definido que o evento Converse com(o) uma cientista seria realizado em 14 de março, em duas sessões independentes, uma das 9h às 12h e outra das 14h às 17h, sendo uma parte das vagas reservada para alunas de escolas públicas convidadas (Tabela 2), com transporte ofertado pela Fiocruz Brasília, e outra parte a ser preenchida por inscrições espontâneas de meninas. O formulário de inscrições foi lançado em 11 de fevereiro, com release no site da Fiocruz Brasília ( www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/converse-como-uma-cientista-inscricoes-abertas-2), post nas mídias sociais ( www.instagram.com/p/CohPWzLs4Oe/?igsh=MWRwdDFrdzZucWNpMQ==) e envio para mailings e redes de contatos.

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Tabela 2: Participação no evento Converse com(o) uma cientista em números.

Quanto às pesquisadoras, embora já houvesse uma lista de possíveis convidadas, optou-se por abrir a oportunidade para todas as pesquisadoras da Fiocruz Brasília. Assim, no dia 15 de fevereiro, um convite extensivo a todas as cientistas da instituição foi lançado nos canais de comunicação interna: as interessadas deviam preencher um formulário, que podia ser encaminhado também para colegas pesquisadoras de outras instituições do DF. Como não havia controle acerca das pesquisadoras convidadas, foi necessário, posteriormente, agendar um encontro virtual com todas as cientistas que se inscreveram para alinhar expectativas e formas de proceder durante o evento.

A maioria das decisões sobre o projeto foram tomadas em discussões rápidas em meio às rotinas de trabalho. A equipe organizadora do evento, formada pela Assessoria de Comunicação e o Núcleo de Eventos, definiu: escolas convidadas; criação de uma página com foto e minibiografia das pesquisadoras ( www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/converse-como-uma-cientista-conheca-as-pesquisadoras-que-participarao-da-atividade); divulgação para a imprensa etc. Criou-se um documento com uma lista de tarefas. Mas nem todas as ações necessárias para o evento foram elencadas; das ações listadas, poucas continham o prazo e o nome do profissional responsável por realizá-las; e esse documento nunca foi atualizado com informações sobre o andamento das tarefas.

Sem antecedência, com risco de chuva e todas as salas da Fiocruz Brasília já reseradas para outras atividades, o encontro entre pesquisadoras e adolescentes ocorreu na lanchonete do prédio, o que, apesar de não ser a ideia inicial, acabou favorecendo o tom informal do evento. Foram previstas 16 mesas, cada uma com uma pesquisadora e cinco adolescentes. A programação do evento ficou assim: 30 minutos de boas-vindas no auditório; 80 minutos de conversas na lanchonete (de 20 em 20 minutos, as meninas trocariam de mesa e conversariam com outras cientistas); 45 minutos de síntese, com a produção do painel ilustrado, no auditório.

As inscrições espontâneas das meninas ficaram abertas até 5 de março. Todas foram aceitas e a equipe organizadora entrou em contato com cada pessoa individualmente para confirmação (no caso das menores de idade, o contato foi feito com os responsáveis). Apesar desse contato, 30,2% das meninas confirmadas faltaram no dia do evento (Tabela 2), sobretudo no turno da tarde, sendo que este percentual foi maior entre as meninas das escolas públicas convidadas (33,3%) do que entre as meninas do público geral (26,6%). Esse fato pode estar associado à assembleia com paralisação, convocada pelo Sindicato dos Professores no DF, no mesmo dia do evento.

Contudo, destaca-se que, mesmo entre as meninas do público geral, que se inscreveram pelo formulário eletrônico, a maioria era estudante de escola pública e muitas foram ao evento em grupo por iniciativa de alguma professora, que conseguiu viabilizar o transporte das alunas por conta própria, independentemente da oferta de ônibus pela Fiocruz Brasília. Esses aspectos reforçam, por um lado, “a relevância do papel de professores na formação da percepção de ciência dos estudantes” [Reznik et al., 2017, p. 849]; e, por outro, a existência de uma demanda por eventos como o Converse com(o) uma cientista.

Quanto às inscrições de pesquisadoras, foram 30 ao todo, sendo 10 de outras instituições e 20 da Fiocruz Brasília, de vários setores. Três não compareceram, 15 participaram pela manhã, 11 à tarde e uma em ambos os turnos. O evento transcorreu bem nos dois turnos, com muitas interações e trocas entre meninas e pesquisadoras, que compartilharam não só experiências acadêmicas, como trajetórias de vida.

Pouco depois, em abril, todas as pessoas envolvidas — equipe organizadora, meninas (e/ou seus responsáveis) e pesquisadoras — foram convidadas a preencher um questionário de avaliação do evento. Dos 48 respondentes, dois o avaliaram como bom e 46, como muito bom.

Apesar do sucesso, à luz da gestão de projetos sociais, o evento poderia ter aproveitado ainda mais as oportunidades e apresentado um desempenho ainda melhor.

3.2 DC à luz da gestão de projetos sociais

A DC é uma atividade paralela a várias outras e, muitas vezes, ela é realizada quando surge uma ocasião [Simião, 2018]. Muitos projetos de DC se concretizam com prazos bastante apertados, como o Converse com(o) uma cientista. Devido à escassez de tempo, somada a uma cultura organizacional de gestão de projetos ainda frágil, em especial nas instituições públicas [Pereira et al., 2014], projetos de DC podem ser conduzidos com uma dose de improviso e informalidade.

A presente análise se baseia em Armani [2009], que apresenta seis principais momentos da vida de um projeto social: identificação; elaboração; aprovação; implementação; avaliação; e replanejamento. Para cada fase, examina-se a seguir como práticas de gestão de projetos sociais poderiam beneficiar projetos de DC, tomando-se como exemplo o evento Converse com(o) uma cientista.

3.2.1 Identificação

Projetos sociais surgem da identificação de uma situação-problema, na qual se pretende intervir e contribuir para sua solução. Embora um projeto isolado não possa prometer uma solução total, ele precisa se comprometer em ser parte da solução e, para isso, é preciso um diagnóstico completo da situação. Para realizá-lo, além de uma revisão bibliográfica, é essencial mobilizar os diferentes atores sociais envolvidos com o problema [Armani, 2009].

No caso do evento Converse com(o) uma cientista, considerando-se que a situação-problema era a iniquidade de gênero no acesso e na participação na cultura científica desde a educação básica, as partes interessadas incluíam as adolescentes, as pesquisadoras, diferentes setores da Fiocruz Brasília, outras instituições de pesquisa do DF, professores, famílias, comunidade escolar, Secretaria de Educação etc. O diálogo prévio com esses atores permitiria compreender mais amplamente a realidade e articular o apoio deles para o projeto.

O Converse com(o) uma cientista propôs uma metodologia participativa para o dia do evento em si. No entanto, no pré-evento, não houve uma consulta específica a esses atores para conhecer suas demandas, alinhar expectativas, coletar sugestões e outras contribuições para o planejamento das atividades. Dessa forma, o projeto teve uma fase de identificação incipiente e partiu-se direto para a elaboração.

O estudo da situação-problema suscita ideias sobre alternativas de solução. Muitas opções devem ser consideradas, escolhendo-se a mais viável [Campos et al., 2002]. Se as partes interessadas tivessem sido consultadas especificamente com esta finalidade, suas vivências poderiam ter enriquecido o projeto.

No questionário de avaliação, por exemplo, uma professora sugeriu que a programação do evento incluísse um momento para que as próprias estudantes que já têm engajamento em projetos científicos apresentassem seus trabalhos. Muitas meninas reclamaram que elas gostariam de ter conhecido mais mulheres cientistas e que o tempo de conversa com as pesquisadoras foi pouco. Houve estudantes que, além das conversas, gostariam de ter participado de atividades práticas e conhecido o local de trabalho das pesquisadoras. Se elas tivessem sido ouvidas antes, e não somente depois, a programação do Converse com(o) uma cientista poderia ter correspondido melhor aos interesses do seu público-alvo.

3.2.2 Elaboração

Nessa fase, os objetivos são formalizados. Eles “devem contribuir para solucionar ou amenizar o problema enfocado pelo projeto, e devem ser uma expressão dos interesses comunitários amplos” [Campos et al., 2002, p. 33]. Pode-se dizer que os objetivos atribuídos ao evento Converse com(o) uma cientista (Tabela 1) foram associados ao desenvolvimento institucional e poderiam ter explicitado mais os interesses comunitários e as contribuições almejadas para o enfrentamento da iniquidade de gênero na ciência.

Os objetivos devem estar relacionados aos resultados, isto é, às entregas que precisam ser feitas para alcançá-los. Os resultados, por sua vez, correspondem a um conjunto de atividades que precisam ser executadas para gerar as entregas esperadas. Para assegurar o correto enlace entre objetivos, resultados e atividades, um exercício importante é trilhar também o caminho inverso: verificar se as atividades propostas são necessárias e suficientes para a produção dos resultados esperados e se a entrega desses produtos permite alcançar os objetivos estabelecidos [Armani, 2009].

Esse exercício de analisar a lógica entre objetivos, resultados e atividades não foi feito no projeto do evento Converse com(o) uma cientista. Essa análise permitiria identificar atividades essenciais, mas esquecidas (como a definição e a reserva do espaço), bem como evitar excessos — paralelamente às conversas na lanchonete, organizou-se, para os(as) acompanhantes das meninas, uma mostra de vídeos no auditório, que não teve audiência.

A elaboração de um projeto inclui, ainda, a determinação dos fatores de risco, condições externas que, se não atendidas, podem prejudicar o desenvolvimento desse projeto [Armani, 2009]. Esses fatores foram considerados no Converse com(o) uma cientista: por exemplo, chuva ou ausência das meninas no dia do evento (Tabela 1). O mapeamento dos riscos serve para antecipá-los e prever possíveis soluções (como a oferta de transporte para convidadas, de modo a assegurar público no evento).

Outros elementos essenciais são os indicadores, que servem para aferir o desenvolvimento do projeto. Para o Converse com(o) uma cientista, não foram explicitados os indicadores nem seus respectivos padrões de desempenho, isto é, “as metas em termos de qualidade e quantidade a serem atingidas em cada um dos indicadores definidos, fornecendo a base para a avaliação dos resultados” [Juliano, 2018, p. 40]. O máximo que foi feito foi uma estimativa, por turno, de 16 pesquisadoras e 80 meninas, o que foi parcialmente alcançado.

Não se calculou o número de inscrições esperadas ao longo do período. Tampouco foram previamente planejadas estratégias adicionais que seriam acionadas para aumentar o recrutamento de público para o evento, caso as inscrições ficassem abaixo do esperado. “Sem os indicadores corremos o risco de avaliar o andamento e os resultados do projeto apenas através de opiniões e impressões. Para fugir desse perigo é necessário que indicadores sejam definidos logo na fase de planejamento, e não no final” [Campos et al., 2002, p. 37].

Se um objetivo do projeto era despertar vocações científicas, então se poderia ter verificado o status do interesse pela ciência entre as meninas antes e depois do evento. Os indicadores necessitam de meios de verificação, ou seja, é preciso haver formas viáveis de aferi-los. No Converse com(o) uma cientista, foram aplicados questionários antes e depois do evento (formulários de inscrição e avaliação), e eles poderiam ter sido planejados com esse foco na necessidade de indicadores, mas não foram.

Ainda em relação à elaboração do projeto, o Converse com(o) uma cientista não contou com o registro de um plano operacional completo: as ações necessárias para realizá-lo não foram exaustivamente mapeadas; e as ações que foram elencadas, muitas vezes, não tinham anotação de prazos e responsáveis, o que representa uma fragilidade na gestão de projetos sociais [Armani, 2009].

3.2.3 Aprovação

A minuta do projeto Converse com(o) uma cientista foi submetida à apreciação de todos os integrantes da equipe organizadora, que fizeram contribuições pontuais. Todos concordaram com a proposta e não houve grande debate, o que pode ser sinal da coesão da equipe. Esse aspecto, porém, pode não ser necessariamente positivo, pois as divergências, as críticas e até o pessimismo são fundamentais para evidenciar problemas e aperfeiçoar o planejamento [Forgep, 2015, p. 20].

A convergência da equipe se justificou por dois aspectos principais: o Converse com(o) uma cientista trazia uma proposta de DC diferente das atividades mais tradicionais, como as palestras; e o evento era relativamente simples para ser implementado no curto prazo, em meio a tantas outras tarefas do dia a dia. Esse correto dimensionamento do projeto favoreceu sua aprovação junto à Direção da Fiocruz Brasília.

3.2.4 Implementação

O Converse com(o) uma cientista começou a ser implementado com um planejamento incompleto, como demonstra o fato de que as inscrições de meninas iniciaram antes mesmo da definição do perfil das pesquisadoras que participariam do evento. Os eventuais ajustes no projeto eram tratados informalmente no cotidiano, sem registro formal, dificultando o controle do andamento do projeto [Juliano, 2018; Firmino, 2023].

No dia do evento, toda a equipe organizadora estava a postos para acompanhar as ações (recepção das adolescentes e pesquisadoras, controle do tempo da programação, qualidade do lanche, fluência das conversas etc.). Não houve, porém, uma divisão formal de tarefas, de modo que todos faziam tudo, sob o risco de algumas ações não receberem a devida atenção. Também no pré-evento, não houve uma distribuição formal das responsabilidades, o que indica uma fragilidade no âmbito da gestão de projetos [Firmino, 2023].

Diariamente, conversava-se sobre as pendências mais urgentes, cada um assumindo parte delas, dentro das suas possibilidades, em meio a outros afazeres. Existia uma tensão entre as demandas do projeto Converse com(o) uma cientista e as atribuições das rotinas de trabalho, o que poderia causar sobrecarga da equipe organizadora. Contudo, projetos de DC têm uma vantagem porque tendem a promover a qualidade de vida no trabalho, conceito que, segundo Chiavenato [2014], engloba aspectos como um ambiente de trabalho agradável e tarefas significativas.

A DC pode ser encarada como uma tarefa significativa, associada à responsabilidade social de dialogar sobre o conhecimento científico. "Esse diálogo pode ser decisivo na tomada de decisão de cidadãos em questões que podem ter impacto em toda a sociedade"[Chagas & Massarani, 2020, p. 20], como a decisão de vacinar-se ou seguir uma carreira científica. Reforçam esse argumento os depoimentos das pesquisadoras, nos questionários de avaliação, que revelam trabalhadoras satisfeitas por terem participado do Converse com(o) uma cientista e contribuído para a formação das meninas por meio da troca de experiências. Satisfação que se estende à equipe organizadora, pois viabilizar o evento foi, nessa mesma lógica, uma atividade significativa.

3.2.5 Avaliação

Na DC, ainda não existe uma cultura sedimentada de avaliação das iniciativas [de Aguiar Pereira & Salles-Filho, 2022]. Prova disso é que, antes da elaboração do presente relato de experiência, as lições aprendidas com o evento Converse com(o) uma cientista ainda não haviam sido sistematizadas, contrariando as orientações da gestão de projetos sociais [Firmino, 2023].

No entanto, após o Converse com(o) uma cientista, aplicou-se um questionário de avaliação. As respostas apontaram no sentido de um evento que contribuiu para tirar a ciência da torre de marfim, desconstruir estereótipos, promover diálogo e participação, valorizar as mulheres cientistas e a diversidade, que são objetivos da DC [Chagas & Massarani, 2020].

Nessas respostas, para descrever os pontos positivos do evento, apareceram palavras e expressões como: conexão, interação, troca, intercâmbio, diálogo, escutar, proximidade, união, sem hierarquização, relação horizontal, acolhimento, inclusão, diversidade, incentivo, chance, oportunidade, empoderamento, curiosidade, reflexões, criatividade, inovação, nova perspectiva, ideias de futuro e transformação. Além disso, perguntadas a respeito do que foi mais marcante para elas durante as conversas com as cientistas, as adolescentes citaram, por exemplo, que se sentiram representadas, que se identificaram com as trajetórias das pesquisadoras e que o evento as inspirou e incentivou para carreiras científicas.

Os questionários de avaliação do Converse com(o) uma cientista também trouxeram demandas como: conversas com mais tempo de duração, mais escolas participantes, presença de cientistas de mais áreas do conhecimento, mais protagonismo das meninas, visitas aos locais de trabalho das pesquisadoras e atividades práticas, entre outras.

3.2.6 Replanejamento

Mesmo quando um projeto tem continuidade, ele não é mais exatamente o mesmo, pois novas oportunidades se abrem. O replanejamento é essencial, pois permite atualizar o diagnóstico da situação-problema, ponderar erros e acertos do projeto, e corrigir rumos. Após a análise aqui descrita, novas estratégias de promoção da equidade de gênero na ciência têm sido propostas e executadas pela Fiocruz Brasília, buscando-se um permanente aperfeiçoamento da gestão dos projetos e das entregas à sociedade ( www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/comissao). Interessante mencionar que os painéis ilustrados ( www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/mais-meninas-na-ciencia-uma-experiencia-transformadora), frutos do evento, estão hoje em exibição permanente no prédio da Fiocruz Brasília, bem como já integraram exposição temporária no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).

4 Considerações finais

Em linhas gerais, o evento Converse com(o) uma cientista foi realizado em consonância com a ideia original (Tabela 1) e houve satisfação das participantes. Contudo, as boas práticas da gestão de projetos sociais agregariam ainda mais valor à iniciativa, maximizando as oportunidades. Muitos aspectos das diferentes fases do projeto não foram adequadamente registrados, existindo somente na memória pessoal dos envolvidos. A recomendação mais geral, portanto, é a adequada documentação dos projetos de DC, pois a falta dela se configura como dificuldade para controle, replanejamento e replicação das iniciativas.

Essa recomendação se desdobra em outras, como a necessidade de: análise crítica e participativa da situação-problema e das alternativas de solução; estruturação lógica do projeto; definição e monitoramento de indicadores; prazos e responsáveis para cada ação. Uma equipe motivada, entrosada e ágil é fundamental, mas apenas vontade de acertar não é suficiente [Campos et al., 2002]. É preciso compreender o ciclo do projeto e aplicar as técnicas adequadas em cada fase, sem que isso signifique burocratizar a intervenção social.

Referências

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Sobre o autor

Maria Fernanda Marques Fernandes. Jornalista de formação, comunicadora de saúde e divulgadora de ciência, com mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ), tecnologista em saúde pública da Fiocruz em Brasília.

E-mail: maria.fernandes@fiocruz.br