Resenha de Série de televisão

Acquarone, F. e Ciavatta, E., dir. (2019).
Santos Dumont.
Brasil: Pindorama Filmes/HBO

Santos Dumont é um dos grandes heróis da ciência brasileira. Em sua homenagem, a cidade perto onde nasceu, o aeroporto do Rio de Janeiro e ruas em dezenas de cidades brasileiras levam seu nome. Sua efígie — homem sério com o chapéu peculiar — foi iconizada em selos e notas. Sua celebridade, no entanto, foi perdendo o brilhantismo com a globalização da cultura norte americana e de sua perspectiva sobre a história da aviação, que retira o foco dos eventos ocorridos na França. Alberto Santos Dumont havia sido consagrado como um dos pais da aviação em Paris que, durante todo o século XIX e início do XX, era vista como a capital das luzes (artes e ciências), onde surgiu o primeiro Aero Club, que foi o ninho da aeronáutica. Mas, mesmo na perspectiva historiográfica brasileira que o celebrizou como herói nacional, sabe-se pouco de suas relações pessoais, das condições concretas, dos processos e costuras que compõe sua vida. A série mostra também a dimensão espetacular da história da aviação, não só o grande encantamento com balões cruzando os céus, mas também com as sensacionais competições e testes públicos das máquinas voadoras, que podiam ser testemunhados por qualquer cidadão ou acompanhados através dos jornais.

Galinha voa? Esta indagação aparece na narrativa como uma boa forma de se abordar a questão das possibilidades e alcances das invenções que estavam se desdobrando. Há várias interpretações históricas que diferem sobre a relevância das diversas experiências no processo de desenvolvimento da aeronáutica. Dependendo do que se considera como voo e do conceito de aviação — Manter-se no ar flutuando, planando ou por empuxo? Por quanto tempo? Como levantar voo: rebocado, lançado ou decolando por auto propulsão?, — se dará maior ou menor destaque à cada uma das muitas façanhas da história da aviação. Todas experiências preenchiam algumas dessas características, mas as concepções do que é mais válido foram se transformando. Os seis episódios da série nos dão a dimensão dessas etapas, de como conhecimentos se acumulam, mas também de como o progresso não é linear. Ele se dá com saltos e ajustes, entremeados por desafios pessoais e estímulos sociais, que se pautam por outras lógicas e ritmos.

Em outubro de 1906 Santos Dumont realizou o primeiro voo público com um avião impulsionado por um motor a gasolina. Embora a aeronave tivesse um nome audacioso — Oiseaux de Proie (“Ave de rapina”) — aquele foi uma espécie de “voo de galinha”: sessenta metros a uma altura de dois a três metros. Sem dúvida um feito memorável, mas que, na acelerada corrida de inovações, foi logo superado. Algumas semanas depois, o próprio Alberto venceu outro desafio colocado pelo Aero Club da França: um voo de mais de 100 metros. Incentivada pela competitividade, uma multidão de interessados veio assistir a prova de seu novo modelo, que percorreu 220 metros a uma altura de seis metros.

Após cada avanço, um novo desafio era lançado. As competições e prêmios impulsionavam novos inventos e também o envolvimento do público. Em 1908, Farman vence o torneio que exigia um voo de pelo menos mil metros. Poucos meses depois, os irmãos Wright apresentam na Europa seus modelos aprimorados com os quais realizam voos longos, de dezenas de quilômetros. Eles afirmaram já ter feito tudo isso antes, com o testemunho de algumas pessoas e até registro fotográfico, mas longe de comissões científicas e da cobertura da imprensa.

Muitos feitos são marcantes na história da aviação e seus realizadores foram merecidamente celebrizados: o primeiro a voar num temporal, a atravessar o Canal da Mancha, a cruzar o Atlântico, etc. Mas cada um deles se beneficiou das lições de experiências anteriores, muitas frustradas ou pouco conhecidas.

Os inventores projetavam e se arriscavam nos voos, e isso lhes trazia grande fama, mas contavam com técnicos habilidosos que também participavam ativamente do processo, com contínuos ajustes e soluções para os problemas que iam defrontando. Na série vemos como mecânicos e artesãos, que geralmente ficam invisíveis na história que glorifica os grandes nomes, tiveram um papel fundamental no desenvolvimento dos aviação.

Santos Dumont havia se celebrizado na virada do século, desenvolvendo a dirigibilidade dos balões, produzindo e pilotando novos perfis (alguns deles minimalistas, outros na forma de charuto) e acrescentando motores e lemes. Mas ele não tinha nenhum interesse comercial ou industrial. Sua motivação não estava no possível lucro, nem em patentes, nem nos valores dos prêmios que disputava. Alguns valores eram elevados, e estimados como “dificilmente alcançáveis”. Para estimular a concorrência, o Aero Club estipulava que aquele que mais se aproximasse do desafio receberia os juros do valor daquele período, supondo-se que levariam anos para que fossem de fato alcançados.

Surpreendendo as expectativas, Santos logo ganha, em 1901, o Prêmio Deutch, cujo desafio era contornar, num balão dirigível, a Torre Eiffel, saindo e retornando ao Aero-Club em 30 minutos, e doa os 100 mil francos aos operários e pobres da cidade. Isso aumentava sua fama e, junto com ela, uma interpretação de que seus feitos eram diletantes, passatempo de riquinho, e não um projeto industrioso de interesse geral. Esta visão refletia o desconhecimento sobre sua perseverança e sua compreensão do papel da persistência no desenvolvimento tecnológico. Sempre insatisfeito com suas invenções e demandando novos reajustes, Santos Dumont escreveu: “O gênio é uma grande paciência; sem pretender ser gênio, teimei em ser um grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso”. Suas memórias, publicadas em 1918 com o título “O que vi e o que veremos”, revelam também o quanto ele se inspirara nas ficções de Júlio Verne. “Eu tinha sentido a possibilidade de tornar reais suas fantasias”. Como o jovem Alberto não tinha vocação para os negócios, seu pai, cafeicultor rico do interior de São Paulo, lhe enviara à França, de onde seu avô havia partido para o Brasil. “Para se fazer homem, mas não doutor.” A recomendação paterna era que ele procurasse “um especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc. Estude essas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica. Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver…” [Dumont, 1918].

Cientista ou inventor? Diversas cenas da série trazem aspectos interessantes para o debate acerca das especificidades dos conhecimento científico e tecnológico e suas interações na história. Que conhecimentos são mais ou menos estimuladas pelos interesses de diferentes grupos sociais? Como teorias e práticas científicas são mobilizadas e incrementadas pelos diferentes agentes envolvidos, ainda quando o foco está nos resultados práticos? Em que medida novos dispositivos são instrumentos fundamentais para o avanço do conhecimento e abertura para novas áreas (geográficas e cognitivas) a serem exploradas?

Mas para estudiosos da comunicação pública da ciência, três aspectos me parecem de especial interesse nesta reconstrução histórica feita para televisão: o teatro da prova, o apoio/ reconhecimento do público e a cobertura jornalística. Os três estão interrelacionados. O primeiro está nas considerações sobre que condições uma prova deve ser aceita e um conhecimento validado. Como no caso da aviação, devido à sua visibilidade espetacular e imaginário popular, houve bastante envolvimento do público, os testes tinham grande cobertura da imprensa, que incrementava o interesse da sociedade.

Pelas memórias de Santos Dumont, podemos ver que sua principal motivação era o reconhecimento público. “Foi graças aos constantes aplausos e encorajamento que recebemos que encontramos forças para, diante de tantos insucessos e perigos, continuarmos na luta… Não só o povo me encorajava nas minhas experiências, mas também a sociedade, as altas autoridades e todos os escritores” [Dumont, 1918].

A jornais deram enorme repercussão aos feitos e projetos de Santos Dumont, como no caso do dirigível feito para Aída de Acosta, a primeira mulher a pilotar, e na publicação do seu projeto do Demoiselle como domínio público. Vaidoso, Santos Dumont se magoava com o tratamento de algumas reportagens. Um dos episódios encenados traz um interessante diálogo a este respeito. Um amigo íntimo do aviador, que fazia ilustrações para os jornais, procura lhe consolar sobre uma notícia depreciativa. “Isso faz parte do jogo: o jornalista pega carona na sua fama e, mesmo quando crítica, você se beneficia da reportagem dele”.

O Petit Santos é retratado na série como um jovem refinado e meio esnobe mas politicamente correto, seja na oposição ao escravismo no Brasil, na polêmica política francesa em torno do caso Dreyfus, no apoio à classe trabalhadora ou no tratamento de seus técnicos como parceiros. É mostrado também com um comportamento sexual arredio ou enrustido, sempre evitando elegantemente as pretendentes. “Meu refúgio é lá no alto, longe das questões mundanas”, diz ele em uma das cenas, sugerindo uma imaginária associação com anjos. Podemos ver ainda que seu espírito inovador se estendia em outras direções. Foi ele quem concebeu e encomendou ao joalheiro Louis Cartier um relógio diferente, mais prático que o relógio de bolso. Algo que deixasse as mãos livres, enquanto observava a medida do tempo. O novo dispositivo parecia uma pulseira, algo feminino que não ficava bem em um cavaleiro. Mas pequenas ousadias, como no trajar e no uso de motocicletas, compunham seu estilo excêntrico. Anos depois, durante a primeira guerra mundial, sua criação do “canhão paradoxal” — para lançar coletes de resgate em alto mar- gerou suspeitas, e ele acabou sendo levado à delegacia e humilhado. Este evento policial e outros acontecimentos do período o levaram a queimar os desenhos de seus projetos e planos, e expressar sinais de sofrimento mental.

Uma das coisas que se contava na narrativa mítica sobre Santos Dumont era que ele havia se suicidado após ter visto os aviões sendo usados como máquinas de guerra. A série televisiva desfaz este e outros mitos, e traz vários aspectos interessantes de sua vida, como suas relações familiares e amizades que facilitaram sua vida, as resistências ao pequeno estrangeiro e como ele enfrentou seus desafios.

A série, que inclui algumas cenas de filmagens da época, se baseia em diversas pesquisas históricas. O trabalho dos atores e de direção são notáveis, e o roteiro a montagem intercalam muito bem as imagens de sua infância na fazenda de café da família, com cenas de Santos Dumont voando e vivendo em Paris, frequentando ambientes da elite bem como hangares e ateliês de construção. As locações exteriores, assim como a dos voos foram feitas com computação gráfica, mas maneira de bastante convincente.

Os episódios da série Santos Dumont nos fazem compreender como a personalidade (sua motivações, receios, posturas ) de um grandes inventores e suas relações sociais (familiares, amizades, trabalho e política) se entremeiam na história da tecnologia (desafios materiais, buscas de soluções, habilidades e dificuldades) e de suas representações públicas (significados, impactos, expectativas).

Referências

Dumont, A. S. (1918). O que vi, o que nós veremos. São Paulo, Brazil. URL: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000197.pdf.

Autor

Bernardo Oliveira. Professor de filosofia da educação e história da difusão da cultura científica na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: pos.fae.bernardo.oliveira@gmail.com.