1 Introdução
Que estratégias comunicacionais assessores e dirigentes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, Brasil, empregaram para enfrentar a emergência de saúde pública provocada pela COVID-19, considerando o contexto de desinfodemia2 e crise socioeconômica, política e ideológica? A pergunta que fomentou a pesquisa aqui apresentada foi feita a profissionais responsáveis por políticas e ações de comunicação pública da Fiocruz na pandemia, anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. Fundada em 1900, a Fiocruz é uma fundação pública voltada à promoção da saúde da população brasileira e à dinâmica nacional de inovação para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde brasileiro.
Para melhor compreensão e análise das ações institucionais no contexto nacional, consideramos que a COVID-19 atingiu o Brasil sob o comando de um governo central que propagou informações sem comprovação científica e, propositadamente, desestimulou a adesão popular às recomendações de prevenção e controle do vírus baseadas em evidências científicas [Asano, Ventura, Aith, Reis & Ribeiro, 2021]. Nos meses que se seguiram ao anúncio da pandemia, fortes disputas de sentido permearam o debate nacional. Estudiosos e lideranças comprometidas com a vida defendiam medidas de isolamento social análogas às adotadas em boa parte do mundo ocidental (graus variados de isolamento social estabelecidos mediante testagem de suspeitos; utilização de máscaras faciais, entre outros dispositivos; isolamento dos casos confirmados etc.). Por outro lado, com o argumento de que o isolamento social impediria que estratos da população pudessem ganhar a vida no trabalho formal e informal, setores pouco comprometidos com as evidências e com o bem-estar social desqualificavam e caluniavam as medidas (e, posteriormente, as vacinas), propondo alternativas terapêuticas que iam de encontro aos inúmeros trabalhos científicos produzidos à época.
Além disso, ao longo dos dois anos mais agudos da COVID-19, a pandemia foi conduzida por ministros da Saúde sem experiência na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS),3 que demonstravam pouco compromisso com a saúde pública e defendiam tratamentos falaciosos, num governo que promovia eventos que geraram aglomerações (e contágios). A condução desastrosa da emergência sanitária resultou em estimadas 400 mil mortes evitáveis [Galvão-Castro, Cordeiro & Goldenberg, 2022, pp. 23–24; Agência Senado, 2021] e contribuiu para o retorno do país ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, em capítulo sobre a desinformação,4
diante do quadro caótico na comunicação oficial e extra oficial durante a pandemia, esta Comissão apurou que não apenas os órgãos públicos de comunicação se omitiram em sua missão de combater boatos e a desinformação, mas participaram ativamente do processo de criação e distribuição desse tipo de notícia. As apurações desta CPI foram capazes ainda de comprovar a existência de uma organização estruturada e dividida em núcleos para atuar na disseminação de desinformação, aferindo especialmente a propagação das ideias defendidas pelo presidente da República [Senado Federal, 2021, pp. 620–621].
Enquanto interesses escusos e suas consequências deletérias eram desvelados pela CPI da Pandemia, tensões se acumulavam com as trocas de comando no MS (foram quatro ministros entre março 2020 e março de 2022) e com a circulação de novas cepas — produzindo taxas de mortalidade e letalidade crescentes por muitos meses, enquanto não se atingia uma cobertura vacinal minimamente adequada.5 Por sua vez, a Fiocruz, em observância ao objetivo de sua Política de Comunicação,6 divulgava informações técnico-científicas baseadas em evidências que contradiziam o poder central, em especial o Ministério da Saúde (MS), órgão ao qual é subordinada.
Naquele contexto, o maior desafio para a Fundação e suas estruturas de comunicação era manter a histórica missão e compromisso da instituição com a ciência e a saúde pública, considerando os diferentes públicos diretamente afetados pela transmissão da virose. Para tal fim, era necessário atuar na mitigação da propagação do vírus e combater a desinfodemia em curso, uma vez que entidades como a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) alertavam:
a nova desinformação sobre a COVID-19 ( …) é mais tóxica e mais letal que a desinformação sobre outros assuntos. É por isso que este resumo de políticas [“Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19”, 2020] criou o termo desinfodemia. A desinformação sobre a COVID-19 se utiliza de uma ampla gama de formatos ( …). Frequentemente, baseiam-se em preconceitos, polarização e identidades políticas, assim como na credulidade, no cinismo e na busca individual por um sentido simplificado face a tantas complexidades e mudanças [Posetti & Bontcheva, 2020, p. 2–5].
Para analisar a atuação da Fiocruz nesse contexto, buscamos apurar desafios e elementos de aprendizado institucional enfocando os primeiros dois anos da pandemia do novo coronavírus. Destacamos o ponto de vista dos profissionais de comunicação que atuaram na linha de frente da emergência sanitária, com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre as possibilidades e os limites da comunicação pública em momento ímpar. Para fins desta análise, adotamos o conceito de comunicação pública proposto por Koçouski [2013]: “estratégia ou ação comunicativa que acontece quando o olhar é direcionado ao interesse público ( …) tem como objetivos promover a cidadania e mobilizar o debate de questões afetas à coletividade, buscando alcançar ( …) negociações e consensos” [2013, p. 54]. Sendo assim, a pesquisa procurou respostas para a seguinte pergunta: que estratégias comunicacionais foram adotadas pela Fiocruz em resposta à COVID-19, na perspectiva da comunicação pública (da ciência e da saúde)?
2 Métodos de pesquisa
O presente estudo é uma pesquisa qualitativa de natureza exploratória. O recorte temporal foi de 11 de março de 2020 a 11 de março de 2022. Os métodos utilizados para a coleta de dados foram:
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Entrevistas individuais com roteiro semiestruturado realizadas com dirigentes (diretamente responsáveis pela condução da Política de Comunicação da Fiocruz) e técnicos (assessores de comunicação) que estiveram na linha de frente no enfrentamento da pandemia de COVID-19.7 As fontes foram sugeridas pelo alto escalão da comunicação institucional em nível central. O critério de seleção priorizou aqueles profissionais que se destacaram na liderança de equipes e atividades estratégicas de comunicação. Em razão das dificuldades intrínsecas à inserção institucional destes profissionais no enfrentamento da pandemia, dos oito nomes sugeridos foi possível entrevistar cinco. O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação ética na Plataforma Brasil para obtenção de autorização à realização da pesquisa (Processo CAAE Nº 51984921.1.0000.5241), em cumprimento às exigências da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
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Pesquisa documental
Visando documentar as condições de produção das iniciativas e práticas comunicacionais da Fiocruz, foram consultadas:
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Fontes de domínio público, a saber, resumos de políticas, relatórios, boletins e outros documentos de instituições de saúde nacionais, organizações não governamentais (ONGs) e governo.
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Reportagens jornalísticas de veículos de imprensa (pública, comercial e independente) e de veículos de instituições do Brasil.
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Os cinco entrevistados foram selecionados de forma intencional [Maxwell, 2012], pois seus perfis atendiam aos critérios estabelecidos pelo recorte e objetivos da pesquisa. O presente estudo utilizou a Análise de Conteúdo [Bardin, 2015] para inferir sentido a partir das entrevistas semiestruturadas. Na análise de conteúdo das entrevistas identificamos dois temas principais: Atuação institucional e Atuação profissional. Os temas foram obtidos a partir do desmembramento, agrupamento e reagrupamento das falas dos entrevistados e serviram como organizadores da apresentação destes resultados. Na apresentação dos resultados aparecem conteúdos oriundos da pesquisa documental mencionada acima.
3 Resultados e discussão
Na sequência, descrevemos elementos de contexto que situam as informações fornecidas pelos entrevistados, apresentadas e analisadas a seguir.
3.1 O caótico contexto brasileiro
Em boletim extraordinário divulgado no dia 17 de março de 2021, os pesquisadores do Observatório COVID-19 da Fiocruz apontaram, com base em dados nacionais sobre as taxas de ocupação de leitos de UTI COVID-19 no SUS, que o governo federal havia conduzido o Brasil ao “maior colapso sanitário e hospitalar da história do país” [Castro, 2021]. Após demitir dois ministros da saúde em menos de três meses por divergências na condução da crise (os dois ministros defenestrados eram médicos e se alinhavam a medidas como distanciamento social, uso de máscaras, testagem em massa, antagonizando a prescrição de medicamentos sem evidências de efetividade), o presidente da República nomeou o General de Divisão do Exército Eduardo Pazuello, militar da ativa (sem experiência em saúde pública e desconhecimento do SUS), para o MS.
Ministro da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, Pazuello será lembrado por muitos como “o ministro da montanha de mortos por COVID-19” [Martins, 2021]. O general foi responsável, por exemplo, pelo colapso assistencial provocado pela falta de oxigênio hospitalar para pacientes internados em Manaus; pela propaganda do uso de medicamentos comprovadamente ineficazes (cloroquina, ivermectina, azitromicina) para “tratamento precoce” (o chamado “kit COVID”); pela suspeita de fraudes em contratos para aquisição de vacinas [Cruz, 2022]; por falhas na distribuição dos imunizantes para os estados brasileiros e pela sonegação de dados da pandemia por ausência de boletins diários (anteriormente emitidos pelo MS). Tal omissão levou os principais veículos de imprensa do país a constituírem, em junho de 2020, um consórcio inédito para divulgação diária dos números da pandemia [Almeida, Costa & Montenegro, 2020, p. 2].8
Em março de 2021, o general foi substituído pelo presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcelo Queiroga. Em setembro, evidenciando pouca atenção e desinteresse, o Ministério da Saúde perdeu milhares de testes de COVID-19, remédios e vacinas, por validade vencida. Em dezembro, Queiroga tentou condicionar a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos à prescrição médica e assinatura de termo de consentimento dos pais, tendo que posteriormente se explicar perante a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, que também questionou a resistência do MS em aceitar as diretrizes da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que negava os supostos benefícios da hidroxicloroquina e da ivermectina no enfrentamento da doença [Agência Senado, 2022]. Ao final de sua gestão à frente do MS, em 31 de dezembro de 2022, o Brasil atingiu a triste marca de 693.941 vidas perdidas para a COVID-19.9
Apresentados, brevemente, o contexto do Brasil e a atuação do Ministério da Saúde na pandemia. Seguiremos pontuando as ações da Fiocruz na emergência em saúde pública.
3.2 A Fiocruz ‘no olho do furacão’
A Fiocruz é uma prestigiada instituição pública de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da América Latina. Fundada em 1900 para produção de soros e vacinas, tem como patrono o médico sanitarista e cientista Oswaldo Cruz (1872–1917).10 Vinculada ao MS, sua missão é produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias para o fortalecimento e a consolidação do SUS.11 Com a emergência sanitária, foi nomeada pela OMS laboratório de referência para o combate à COVID-19 nas Américas e hub regional para as vacinas de RNA mensageiro [Lang, 2021].
No relatório “Balanço de Gestão: atuação da Fiocruz na pandemia COVID-19 2020–2022” [Fiocruz, 2022], a Fiocruz apresentou nove eixos temáticos relativos à sua atuação no enfrentamento da crise sanitária, entre março de 2020 e março de 2022, a saber: imunização; vigilância; atenção à saúde; pesquisa e inovação; informação, comunicação e divulgação científica; educação; saúde global; apoio às populações vulnerabilizadas; gestão institucional.
No conjunto de ações, destaca-se a atuação das assessorias de comunicação — instadas a responder às demandas por informações científicas qualificadas, porém submetidas institucionalmente ao MS. Vale esclarecer que a comunicação na Fiocruz é exercida de maneira descentralizada pelas assessorias de comunicação das suas unidades técnico-científicas e escritórios, localizados no Rio de Janeiro e em outros estados da Federação brasileira. São estruturas independentes e alinhadas à Coordenadoria de Comunicação Social da presidência da Fundação (CCS) onde atuam, aproximadamente, 70 profissionais que gerenciam inúmeros sites e redes sociais institucionais e realizam outras atividades de comunicação e divulgação científica. É relevante destacar que a CCS é responsável por definir diretrizes e orientar o trabalho de assessoria de imprensa e a produção jornalística das unidades, além de cuidar da comunicação interna e da comunicação institucional da presidência da Fiocruz.
Como proposta para disponibilizar informação científica e esclarecer dúvidas sobre a virose, seus sintomas, formas de contágio e autoproteção foi criada no Portal Fiocruz uma página exclusiva,12 com notícias, vídeos, materiais educativos e seção de “perguntas e respostas”. Também foi desenvolvido o Radar COVID-19 Favelas, informativo elaborado no âmbito da Sala de Situação COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, vinculada ao Observatório COVID-19 da Fiocruz. Essa interessante iniciativa13 foi produzida com base no monitoramento ativo (vigilância de rumores) de fontes não oficiais (mídias alternativas e redes sociais) e no contato direto com moradores, coletivos, movimentos sociais, instituições e articuladores locais.
Já a CCS e o Canal Saúde14 lançaram o projeto “Fiocruz na pandemia”, um conjunto de vídeos curtos, disponibilizados no YouTube, sobre a atuação da instituição no combate à COVID-19. Além destas iniciativas, a Fiocruz realizou duas Oficinas de Vacinas destinadas a jornalistas brasileiros que estavam cobrindo o tema, com o objetivo de esclarecer possíveis dúvidas sobre questões como o processo de produção de imunizantes contra a COVID-19 e o surgimento de variantes e efeitos adversos. Organizadas pela CCS, as oficinas foram transmitidas pela Internet e contaram com a participação de 166 jornalistas de todo o Brasil.
Em 2021, no documento intitulado “Equidade, saúde e democracia: a comunicação como estratégia da Fiocruz no enfrentamento da pandemia”, apresentado ao IX Congresso Interno,15 a Câmara Técnica de Informação e Comunicação da Fundação (CTIC)16 destacou que a comunicação, no período pandêmico mais agudo, foi essencial para a “divulgação das iniciativas, estudos e produções em geral da Fiocruz”. Segundo os autores do documento, a comunicação pública exercida gerenciou a imagem da instituição, garantiu a transparência do uso dos recursos no enfrentamento da pandemia, ajudou a combater a desinformação e promoveu o fortalecimento do SUS, do qual a Fiocruz é parte [Fiocruz, 2021, p. 1].
No combate à desinformação sobre a pandemia, aponta o documento, a estratégia foi concentrar esforços na divulgação de informação fundamentada, referenciada e contextualizada em sites, redes sociais, veículos, eventos e publicações em geral. O resultado foi o aumento, em 2020, de 112% na inserção da Fiocruz (99,5% de forma positiva ou neutra) na imprensa nacional e regional, em relação a 2019: “o conhecimento e a atuação de setores de comunicação da Fiocruz foram determinantes para que os pesquisadores estivessem entre os principais porta-vozes da ciência sobre o tema, elevando a níveis inéditos o grau de respeitabilidade da Fundação nacional e internacionalmente” [Fiocruz, 2021, p. 1]. Já a página web da Agência Fiocruz de Notícias (AFN)17 publicou, no período de 11/03/2020 a 11/03/2022, 769 notícias (classificadas em dez editorias)18 e 120 notas oficiais sobre a produção e distribuição de vacinas publicadas.
Delineados alguns dados das decisões estratégicas e iniciativas de comunicação, a seguir apresentamos elementos de contexto institucional que também exerceram influência no trabalho das equipes de comunicação.
3.3 Política de comunicação da Fiocruz: processo em construção
Desde 2017, com a publicação de sua Política de Comunicação, a Fiocruz se comprometeu com o reconhecimento da comunicação como “processo participativo e dialógico de produção, circulação, debate, acesso, compartilhamento, apropriação, ressignificação e intercâmbio de informações e sentidos” [Fiocruz, 2017, p. 15]. Instrumento orientador e normativo, a Política reconhece a comunicação como campo de conhecimento que conjuga “ensino e formulação de políticas públicas; pesquisa e desenvolvimento metodológico; assessoria e cooperação técnica; desenvolvimento de estratégias e inovações e atenção integral à saúde” [Fiocruz, 2017, p. 7]. A Política também inclui a acessibilidade, a interatividade, a pluralidade de vozes e a diversidade como premissas básicas do diálogo com a sociedade, em um processo que se caracteriza como comunicação pública. O documento ainda aponta como um de seus princípios o reconhecimento da comunicação como “área finalística, transversal a todas as áreas de atuação e elemento estruturante de sua missão” [p. 16].
Contudo, apesar dos avanços, o texto da Política assinala que persistem “a fragmentação, a redundância e a sobreposição das ações de comunicação” na Fiocruz, “bem como um nível de institucionalidade aquém do necessário que se reflete, muitas vezes, em infraestrutura deficitária, escassez de recursos humanos e orçamentos insuficientes” [Fiocruz, 2017, p. 14]. Segundo o documento, a comunicação da Fundação “deixa de apresentar a efetividade que se espera em seu diálogo com a sociedade. Os mecanismos de participação popular e ausculta social são ainda deficitários, afastando a instituição, em alguns momentos, do ideário que a orienta” [Fiocruz, 2017, p. 14].
Em 2020, poucos anos após a publicação deste diagnóstico, os gestores e assessores de comunicação da Fiocruz se depararam com a COVID-19 e a expressiva demanda de jornalistas, nacionais e internacionais, por dados e informações sobre a doença, suas causas, consequências e mecanismos de enfrentamento. Na fala de um assessor foi possível verificar que houve o cuidado em preparar os cientistas para atenderem às demandas da imprensa, de forma a assegurar a sincronização e o alinhamento do discurso institucional. Observamos, no entanto, que houve poucas fontes disponíveis, o que pode ter sobrecarregado aquelas que recorrentemente falavam aos jornalistas.19
Ent. 3: “A velocidade das atualizações era tão grande que era difícil preparar vários porta-vozes e não correr o risco de ter discursos desatualizados ou desencontrados. Todos deram uma lição de abnegação, de esforço e dedicação e trabalharam em condições que não podem voltar a acontecer. Ou seja, tem que ter clara e inequivocamente um esforço das condições físicas e estruturais.”
Além de constatarem a impossibilidade de preparar porta-vozes em número suficiente para suprir a demanda por informações, os entrevistados também mencionaram falta de infraestrutura e de recursos financeiros, o que impediu a contratação e o provimento de gratificações para os profissionais de comunicação, em sua maioria terceirizados, que atuaram sob intensa pressão, inclusive emocional. Por outro lado, afirmaram que o contexto de crise também propiciou a articulação interna da equipe da CCS com os assessores das unidades da Fiocruz, o que favoreceu a integração:
Ent. 2: “Eu tinha pelo menos uma pessoa de plantão na Agência Fiocruz de Notícias, plantão sábado e domingo, e a pessoa depois tirava uma folga durante a semana. Mas eu nunca consegui pagar esses plantões porque não tinha dinheiro. Então tive muita sorte de ter uma equipe muito comprometida com a situação, com o trabalho. Durante um tempo, outros jornalistas de outras unidades [da Fiocruz] trabalharam com a gente também.”
Em distintos episódios de emergência sanitária, segundo os entrevistados, a Fiocruz monta ‘salas de situação’ (compostas de grupos constituídos por cientistas, pesquisadores, dirigentes e assessores de comunicação) para elaborar respostas técnico-científicas a eventos sanitários inéditos ou excepcionais, disponibilizar informações qualificadas, alinhar o discurso institucional e evitar ruídos que obstaculizem uma eficaz comunicação. Na medida em que inclui os assessores, é possível afirmar que a estratégia denota um grau de reconhecimento destes profissionais e de seus saberes técnicos como necessários à interlocução da instituição com a sociedade, e avança na afirmação da comunicação como elemento intrínseco à saúde pública, conforme preconizado na Política de Comunicação, segundo afirmou o entrevistado:
Ent. 2: “Na COVID a CCS já tinha uma bagagem, uma experiência de lidar com crise muito grande. Ao mesmo tempo, a comunicação de fato é estruturante na Fiocruz, porque numa sala de situação, numa emergência sanitária, tem o pesquisador, o coordenador daquele projeto, tem as pessoas que trabalham lá e a comunicação. A comunicação está presente desde a primeira reunião de qualquer crise que aconteça na Fiocruz.
Nessa mesma perspectiva e com o intuito de avançar no diálogo com diferentes grupos sociais a Fiocruz lançou, no início de 2020, o Observatório COVID-19 Fiocruz20 (importante fonte de orientação de políticas públicas durante a pandemia). Ao longo de 24 meses, jornalistas da AFN produziram 79 boletins do Observatório, com resultados de estudos, análises e notas técnicas, em linguagem acessível. Os Boletins se tornaram uma das principais fontes de informação para a imprensa e a sociedade [Fiocruz, 2022] e avaliados como estratégia de comunicação interna bem-sucedida, visto que aproximou os especialistas dos assessores, que “traduziam” os dados científicos em textos de fácil leitura e compreensão, alertando sobre a percepção de risco em duas dimensões distintas: julgamento de risco em nível pessoal e julgamento de risco em nível social,21 segundo afirmou um dos entrevistados:
Ent. 1: “o que nós buscamos fazer foi uma comunicação ativa, do ponto de vista institucional, através do Observatório COVID-19, dando liberdade aos pesquisadores para que, com embasamento técnico, dessem laudos, pareceres, emitissem boletins, e a partir de um determinado momento a população se informou em grande parte da situação da pandemia por esses boletins. Informação confiável estava ali. Então foi uma estratégia.”
A base técnico-científica adquirida ao longo de décadas e, principalmente, em epidemias recentes — H1N1, Zika, Febre Amarela — garantiu capacidade de resposta à COVID-19 [Fiocruz, 2022], o que ficou evidenciado na fala do entrevistado:
Ent. 1: “Nós tínhamos uma base que, ainda que pudesse ter avançado mais, com mais investimentos em Ciência e Tecnologia no país, nos permitiu, por exemplo, a partir de um histórico de projetos de parcerias e desenvolvimento produtivo na área de biofármacos, migrar não só infraestrutura física, mas também conhecimento, capacidade, know how, tecnologia, recursos humanos para produzir e incorporar em tempo recorde a tecnologia da vacina da AstraZeneca. Na pandemia nenhuma inovação do zero foi bem-sucedida. As inovações vinham de uma base de investimentos em pesquisas, no SUS.”
Nessa perspectiva, Massarani et al. [2021], em amostra de pesquisa sobre como brasileiros e brasileiras veem a Fiocruz, apuraram a percepção da sociedade brasileira sobre a COVID-19. No estudo, realizado em meados de 2020 em 12 cidades do Brasil onde a Fiocruz mantém unidades ou escritórios, os autores observaram que “boa parte dos entrevistados reconhece a gravidade da pandemia, a importância de se informar corretamente, considera as medidas indicadas por autoridades de saúde válidas e confia em cientistas e instituições científicas como fontes de informação”. Além disso, constataram que “o sucesso de políticas públicas para evitar o contágio e barrar a transmissão da doença depende, em parte, da percepção sobre ciência e cientistas, do grau de confiança nas instituições e na mídia e na percepção de risco das pessoas sobre a pandemia” [2021, pp. 3265–3274].
Nesse ponto é relevante destacar a análise de Waisbord [2020] sobre a ascensão das mídias sociais e o subsequente aumento do interesse das pessoas por temas da saúde — imunização, moléstias infectocontagiosas e índices de morbidade e mortalidade de algumas doenças — provenientes de fontes não biomédicas. Segundo ele, o “velho regime de informação sobre saúde”, até então baseado em dados fornecidos à imprensa pela comunidade médica e por instituições de saúde pública, governos, ministérios da saúde, laboratórios, corporações farmacêuticas, instituições de pesquisa e organizações sem fins lucrativos, perdeu força e já não monopoliza o conhecimento e a verdade sobre toda e qualquer questão de saúde, o que reconfigura a própria autoridade do saber médico:
Os governos continuam a produzir a maior parte das informações sobre saúde pública e as condições dos serviços de saúde. As empresas farmacêuticas exercem um tremendo poder à medida que geram continuamente informações sobre pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e tratamentos e produzem volumes extraordinários de mensagens de propaganda, marketing e relações públicas para distribuição em massa. Algumas organizações de notícias de saúde continuam a ter grandes audiências, mas agora funcionam em um espaço de informações mais sobrecarregado. Elas competem com uma vasta gama de fontes não biomédicas que constantemente alertam e informam os consumidores sobre problemas de saúde [Waisbord, 2020, p. 8].
Em outras palavras, o “antigo regime” não chegou a entrar em colapso, mas perdeu poder diante do que o autor denomina “ecologia da informação mais ruidosa e caótica”. Nesse cenário, as informações biomédicas podem se perder facilmente em meio a um imenso volume de afirmações, rumores e dados sobre inúmeros assuntos de saúde, permitindo a grupos e indivíduos a oportunidade de questionar, ajustar e também interpretar mal o conhecimento biomédico estabelecido, abalando a confiança antes conferida a especialistas e instituições epistêmicas.
3.4 Comunicação pública em cenário de desinfodemia e crise política
Além do desafio de elaborar ações para enfrentar a infodemia e a desinfodemia em uma sociedade heterogênea, a comunicação da Fiocruz precisou lidar com uma crise política sem precedentes recentes, principalmente pela dificuldade de interlocução com o Ministério da Saúde. Em momento de exacerbação do medo, da insegurança e da dúvida, com milhares de mortos a cada dia, a desinformação [Wardle & Derakhshan, 2017] promovida pelo governo federal sobre a transmissibilidade do vírus, no primeiro ano da pandemia, também recaiu sobre a vacinação no ano seguinte [Asano et al., 2021], como relatou um entrevistado:
Ent. 3: “A gente tinha um limite e sabia que não podia descambar para a política. Essa orientação foi uma orientação chave. Hoje as pessoas reconhecem que a gente não caiu nessa armadilha. No início de 2020, a gente defendeu o lockdown. Ao mesmo tempo, teve uma perseguição a um pesquisador da Fiocruz em Manaus, por conta da [crítica à] cloroquina. Então, além do próprio problema da crise sanitária, a gente viveu uma situação política, ideológica. A gente não tinha interlocução no Ministério da Saúde, a gente não teve suporte da comunicação, como aconteceu nas outras crises de ebola, febre amarela, zika.”
Diante da desinfodemia sobre o vírus e a vacinação, a comunicação da Fiocruz, apoiada nas pesquisas que asseguravam a efetividade dos novos imunizantes buscou, segundo o relato, minimizar ruídos que impedissem os esforços em defesa da ciência. Nas falas dos entrevistados, destacou-se o papel de mediação dos assessores que, em momentos de imprevisibilidade, do excesso de demandas da imprensa e de alta visibilidade institucional, adotaram estratégias amparadas no conhecimento científico e na confiança nas fontes internas.
Ent. 5: “A gente não rebatia diretamente [a desinfodemia], era mais construir uma narrativa de que a vacina é segura, do que exatamente desmentir, era muita coisa. Na pandemia toda, dificilmente a gente fez um material desmentindo alguma coisa específica. Foi uma questão de tempo mesmo e de construção da confiança, de aumentar a confiança da sociedade, do público, na Fiocruz.”
Nessa mesma linha de comunicação pública da ciência e da saúde, vale destacar uma iniciativa que indica a credibilidade conquistada pela Fiocruz na COVID-19 e sua reputação como instituição científica e de saúde pública confiável, conforme apontaram Massarani et al. [2021]: a parceria estabelecida com as bigtechs, as grandes corporações de redes sociais digitais, para ampliar o alcance das informações disponibilizadas sobre a doença e orientar as populações quanto aos riscos da virose. A Fiocruz foi procurada por Google, Facebook, Youtube e Twitter para suprir tais empresas de dados e informações qualificadas sobre o novo coronavírus. Nessa parceria, durante os dois anos da pandemia o impulsionamento de conteúdos, fonte de ganhos bilionários destas corporações de mídia, não foi cobrado da Fundação, conforme destacou o entrevistado:
Ent. 4: “Facebook, Twitter, Youtube, Google, todo mundo procurou a gente [Fiocruz] para propor parceria. Com o Facebook, a gente ganhou uma doação e fez um trabalho com a vacinação de indígenas. A gente conseguiu colocar posts nas cidades onde tinha população indígena e também material gráfico, que a gente fez pro Whatsapp. Também com os jovens de 18 até 20 anos a gente fez um material específico [para o Facebook] e aí você consegue também colocar só aquelas pessoas pra verem aquilo ali. Com o Twitter a gente teve parceria para impulsionamento da AFN acessibilidade [as principais notícias da agência da semana em vídeo, com legenda e áudio em português e tradução em libras]. Toda semana a gente impulsionava o tuíte desse material. Gratuito também. A Google criou um hub das principais perguntas que estavam sendo feitas sobre a COVID. A gente colocava o link no nosso portal [portal Fiocruz] com a resposta pra aquela questão e dava um ok, então a plataforma deles [mostrava] a nossa resposta para aquela pergunta, para as pessoas. Muito bacana.”
Outra estratégia empregada nos momentos mais sensíveis foi a produção de notas e comunicados oficiais, textos emitidos pela organização para a imprensa e a sociedade com o fim de transmitir informações e expressar a opinião de sua presidência, diretorias e, indiretamente, de todo o corpo de colaboradores. Nesses casos, em lugar de notícias produzidas pelos jornalistas especializados em ciência e saúde da instituição, divulgaram-se notas oficiais como forma de esclarecimento e mecanismo de transparência, de maneira a poupar dirigentes, cientistas, médicos ou pesquisadores de exposições excessivas na mídia, que poderiam incorrer em personalização da informação e mesmo da instituição.
Ent. 2: “Porque quando havia alguma questão política envolvida, algum confronto que pudesse acontecer, a gente trabalhava com nota oficial. Eu acho que esse é o ponto que a gente não tinha trabalhado tanto em outras crises. Mas como essa foi uma crise de longo prazo, dois anos, e envolveu também uma crise política, institucional, econômica, internacional, a nota oficial foi a voz da Fiocruz. E as reuniões da comunicação com a presidência ficavam para o fim de semana, que era quando eles conseguiam atualizar a gente do que estava se passando, e o que estava sendo esperado para a próxima semana também. Então a gente sabia que tinha todas as informações para a gente poder decidir o que colocar numa nota, ( …) o que está mais amadurecido para a gente levar para a sociedade.”
Apesar da reconhecida insuficiência de estrutura das assessorias de comunicação, as entrevistas indicam como a Fiocruz buscou ser propositiva na diversificação de ações de comunicação, na direção de promover diálogos com os segmentos da sociedade brasileira. Uma das iniciativas para promover interlocução com populações moradoras de favelas gerou a campanha ‘Se liga no corona’. A ação envolveu várias instâncias e unidades da Fiocruz e os coletivos de comunicação dessas populações na produção de peças gráficas, vídeos, produtos sonoros, carros de som e até radionovelas, procurando valorizar o saber desses grupos. Outra inovação com o propósito de fortalecer a interação com as comunidades foi o ‘Selo Fiocruz tá junto’. A estratégia visava à validação, pelos cientistas da instituição, dos materiais de campanhas produzidas pelas próprias organizações populares [Fiocruz, 2021].
Ent. 5: “A gente entende que estava num período de experimentação, de fazer uma comunicação a partir de uma construção, de um diálogo. Nas situações em que a gente via que não tinha o domínio da linguagem ou o domínio daquele público, a gente procurou se aliar a quem tinha aquela linguagem. O interesse era que a gente pudesse olhar a realidade das favelas, a necessidade de informação identificada pelos próprios moradores e o tipo de linguagem, de forma que aquilo não ficasse como uma prescrição solta e desconectada dessas realidades, dessas condições de vida, de trabalho, de deslocamento, de mobilidade urbana e não afrontasse também as crenças pessoais.”
O mesmo entrevistado reconhece que há ainda um caminho a ser trilhado, que inclui a revisão de práticas, o investimento em tecnologias e no desenvolvimento profissional dos profissionais de comunicação da instituição:
Ent. 5: “Acho que esse tipo de cenário impõe uma revisão muito profunda das nossas práticas, aumenta nossa responsabilidade de produzir uma comunicação que realmente chegue nas pessoas. A gente, na Fiocruz tem uma série de canais de comunicação que nos colocam como instituição que não só produz comunicação institucional a partir de matérias, releases, da relação com a imprensa, com as mídias sociais, mas também atua na comunicação pública da ciência.”
Como assinala Silva [2008], uma relação dialógica, de interação e reconhecimento do outro não consiste em simples troca de informações: “só há diálogo quando o interlocutor é tomado como um igual no campo da argumentação. O melhor argumento deve prevalecer em relação ao discurso de autoridade” [p. 9]. Ou seja, só há boa comunicação mediante iniciativas voltadas para melhorar a vida das pessoas a partir do ponto de vista do cidadão como sujeito [Duarte, 2009], não apenas como usuário ou receptor da informação. Tal concepção pode vir a configurar um novo paradigma para a comunicação científica, ao voltar-se para contribuir para processos de construção de convergência de sentidos, no âmbito da ciência, conforme nos foi apontado em uma das entrevistas:
Ent. 1: “O novo paradigma de comunicação científica implica dizer que não é possível comunicar a ciência de uma forma vertical, atribuindo à sociedade uma ignorância. É importante pensar a ciência como um saber com determinadas características que permite apontar caminhos de solução de problemas, ainda que não sejam caminhos imediatos. O que se discute muito é que não se trata de afirmar a ciência como detentora de verdades absolutas, mas de comunicar o processo a partir de pesquisas que seguem métodos científicos que podem ser verificados.”
Para além de divulgar orientações sobre como evitar riscos e mitigar os efeitos de uma doença que pode levar à morte, a ciência se beneficia quando comunicada de forma horizontal, de modo a engajar a sociedade, apreendendo novos sentidos que valorizem os diferentes contextos socioculturais. Mesmo na vigência de limites (financeiros, de pessoal, crise política), o esforço de produção e compartilhamento de informação qualificada se mostrou fundamental para o enfrentamento e a minimização dos danos decorrentes da pandemia de COVID-19, sendo a infodemia e a desinfodemia fatores que atuaram em paralelo a esse episódio dramático da saúde pública brasileira e mundial.
4 Considerações finais
Neste trabalho, partimos da reflexão sobre comunicação pública da ciência e da saúde para questionar os elementos de aprendizado institucional da Fundação Oswaldo Cruz na pandemia. Como observado, os desafios impostos pela COVID-19 demandaram inovação e desenvolvimento de diferentes estratégias comunicacionais, explicitando como o tempo do jornalismo, tributário do “furo”, da notícia em primeira mão, dificilmente se adequa ao tempo das ciências da saúde. Construído a partir de verificações sucessivas, consensos, avaliação por pares, rigor e transparência, o dinâmico conhecimento em saúde, em vigência de epidemias, impõe esforços extraordinários.
Em contexto de desinfodemia e crise política, econômica e social, o traçado da comunicação exercida pela Fiocruz propiciou novos arranjos internos e a revisão de práticas das equipes de comunicação. Os depoimentos dos entrevistados, selecionados por seu protagonismo no enfrentamento das demandas e necessidades comunicacionais nos dois primeiros anos da pandemia, informam sobre lições aprendidas e documentam como a COVID-19 se diferenciou de outras crises sanitárias enfrentadas pela instituição centenária e testou sua Política de Comunicação. Daí nosso interesse em registrar tal aprendizado.
Koçouski [2013] argumenta que “a comunicação pública não é um modelo utópico, em substituição às demais formas comunicativas existentes ( …). Apresenta como característica intrínseca a perspectiva ética do interesse público — sem a qual deixa de existir enquanto conceito” [2013, p. 54]. Cabe, no entanto, questionar até que ponto as instituições, em situações concretas, e por vezes desfavoráveis de operação, conseguem praticar suas premissas éticas e técnicas. No caso em estudo, há evidências de que a confiança e a credibilidade das fontes de informação, que envolveu dirigentes e cientistas da Fiocruz, impactaram nos mecanismos adotados pela sociedade em resposta aos desafios impostos pela pandemia.
Os custos, no caso, foram altos. Os entrevistados identificaram as possibilidades e os limites à comunicação impostos pela desinfodemia. Destacaram decisões estratégicas para evitar embates com o poder central por meio da divulgação de pautas positivas baseadas em dados científicos, buscando ampliar o diálogo e a interlocução com os mais diversos grupos sociais. Apesar dos ataques à ciência promovidos pelo Executivo, a Fiocruz apostou na sua autonomia para se fazer comunicar lançando mão de múltiplos canais, apoiada num trabalho exaustivo de suas unidades distribuídas no país. A crise estreitou laços e fortaleceu a articulação interna entre cientistas e comunicadores. No entanto, a valorização dos profissionais de comunicação, observada nas falas, se deu à custa de sacrifício e ausência de mecanismos de gratificação pelas longas jornadas de trabalho consumidas na atenção a demandas de várias naturezas.
Manter-se por tantos meses no ‘no olho do furacão’ significou lidar cotidianamente com um governo hostil à ciência, participando ativamente de redes de entidades de saúde, ciência e tecnologia nacionais e internacionais. Na interlocução constante com órgãos de imprensa, instituições de ensino e pesquisa e com estratos diversos da sociedade civil, os profissionais da comunicação valorizaram o apoio mútuo, a capacidade aumentada de produção conjunta e a aproximação com lideranças comunitárias.
De fato, a necessidade de dar respostas a diferentes públicos certamente valorizou o papel dos jornalistas e das assessorias, que produziram expressiva quantidade de publicações e garantiram um bom desempenho comunicacional à Fiocruz. Há, porém, que se enfrentar os problemas estruturais apontados, a necessidade de reforços e de qualificação das equipes de comunicadores, bem como aprimorar as condições salariais e contratuais, visto que a maioria dos assessores não são servidores de carreira. Nota-se, nas entrevistas, que essas equipes trabalharam em condições muito aquém das ideais, porém as falas deixam ver uma certa ‘naturalização da precariedade’ — o que pode inviabilizar, ou não fomentar, o necessário debate institucional sobre a questão.
No final de 2021, a Câmara Técnica de Informação e Comunicação (CTIC) documentou que “ao longo desses dois anos de pandemia, a ideia norteadora da Política, de que é preciso conceber e fazer comunicação de forma ampliada, sempre comprometida com o público e com a sociedade, ganhou adeptos” [Fiocruz, 2021, p. 4]. Nossos dados indicam que é possível e necessário aprimorar a comunicação pública da ciência e da saúde, aproximar o cientista do comunicador e, mediante a ampliação da capacidade de diálogo, alcançar melhores resultados comunicacionais, em consonância com a Política de Comunicação.
A constituição da Sala de Situação da COVID-19, a publicação dos boletins do Observatório COVID-19, nas quais os assessores conquistaram protagonismo e estreitaram laços com pesquisadores e cientistas, denotaram uma possível alteração do lugar da comunicação na hierarquia institucional. Resta saber, entretanto, até que ponto a perspectiva dos dirigentes incorpora o papel estratégico da comunicação, de modo a superar a posição normalmente secundária dos assessores. Uma verdadeira Política de Comunicação pública deve ir além da produção de press releases e notas oficiais para a imprensa. Há que se debater sobre o lugar dos assessores nos organogramas e nas dinâmicas institucionais.
No enfrentamento da pandemia, foi identificado que a instituição combinou elementos dos modelos de comunicação propostos por Lewenstein [2010], como também exerceu uma comunicação voltada à construção da cidadania [Matos, 2009; Duarte, 2009] e à garantia da legitimidade e da confiança dos cidadãos nas instituições científicas [Castelfranchi & Fazio, 2021, p. 7]. Há que se observar, portanto, se a Fundação irá potencializar a visibilidade conquistada na pandemia: segundo dados do Relatório Balanço de Gestão 2020–2022, “o perfil da Fiocruz no Facebook atingiu 1,4 milhão de seguidores e algumas postagens chegaram a picos de 40 milhões de alcance, o que corresponde a um número equiparado com a audiência do maior telejornal do país” [Fiocruz, 2022, p. 26].
As entrevistas e fontes documentais corroboraram nossas premissas de que a desinformação reiteradamente promovida pelo governo federal e a omissão do MS no cumprimento de suas funções contribuíram para o desastroso desempenho do Brasil na emergência sanitária. Por outro lado, estimularam o fortalecimento do jornalismo profissional (o consórcio de imprensa, por exemplo, exerceu papel fundamental na divulgação dos números da pandemia) e favoreceram a consolidação da imagem da Fiocruz como instituição de ciência e saúde confiável, fonte de informações qualificadas, o que exemplifica a importância da comunicação pública na área da saúde coletiva. Mais do que ater-se a comunicar riscos [Organização Mundial da Saúde, 2018], parece indispensável, sobretudo em emergências sanitárias, promover o diálogo, concebendo o cidadão e a cidadã como sujeitos de mudanças e não meros receptores de informações.
No caso em estudo, isso implica compreender o papel estratégico da comunicação, contornar as dificuldades de infraestrutura apontadas pelos entrevistados com planejamento e alocação de recursos e superar as fragilidades de vínculo dos profissionais, agregando oportunidades de desenvolvimento técnico-científico. Cabe observar, a partir do aprendizado derivado desse trágico episódio da saúde pública global, se a comunicação pública, reconhecida como elemento estruturante pela Fiocruz em seus documentos de gestão, principalmente em sua Política de Comunicação, será efetivamente implementada e continuamente aprimorada.
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Autores
Cristiane d’Avila é jornalista da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Mestre em
Comunicação Social e Doutora em Letras (PUC-Rio), Pós-doutora em Filosofia,
Comunicação e Informação (Universidade de Coimbra). Pesquisadora associada do
Observatório História e Saúde (OHS/COC/Fiocruz) e membro da Rede de Jornalistas e
Comunicadores da Ciência (Rede ComCiência).
E-mail: cristiane.davila@fiocruz.br
Adriana Cavalcanti de Aguiar é Professora do Programa de Comunicação e
Informação em Saúde do ICICT-Fiocruz/ Médica, Mestre em Saúde Pública,
Doutora em Educação, Pós-doutora em Comunicação (ECO-UFRJ).
E-mail: Adriana.aguiar@post.Harvard.edu
Notas
1Resultado parcial da pesquisa de pós-doutorado de Cristiane d’Avila realizada no Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal, em 2022, sob a supervisão do Dr. João José Figueira da Silva, jornalista, professor e pesquisador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS 20) da Universidade de Coimbra.
2O conceito de “Desinfodemia” foi utilizado no Resumo de Políticas “Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19” da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura [Organização Pan-Americana da Saúde, 2020] e deriva de “Infodemia”, fenômeno descrito pela Organização Pan-americana da Saúde (OPAS/OMS) como um grande aumento no volume de informações, que podem se multiplicar exponencialmente, em pouco tempo, devido a um evento específico, como a pandemia [Organização Pan-Americana da Saúde, 2020, p. 2].
3A Constituição Federal de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), criado com a perspectiva de oferecer a todo cidadão brasileiro acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde.
4Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado Federal para investigar supostas omissões e irregularidades nas ações do governo federal do presidente Jair Bolsonaro, no trato da pandemia. Criada em 13 de abril de 2021 e concluída com a apresentação e votação do relatório final em 26 de outubro de 2021.
5Após inúmeras pressões, a vacinação contra a COVID-19 foi iniciada em 17 de janeiro de 2021.
6A Política de Comunicação da Fiocruz foi publicada em 2017 com o objetivo de “estabelecer princípios, diretrizes, orientações, normas e responsabilidades no âmbito de sua abrangência e buscar a construção de uma comunicação pública, democrática e participativa no Brasil, contribuindo para a missão da Fiocruz e para seus objetivos estratégicos, em especial o compromisso com a sociedade e com o fortalecimento do SUS e do SNCTI” [Fiocruz, 2017, p. 16].
7As entrevistas foram doadas pela responsável pela pesquisa, Cristiane d’Avila, e compõem o acervo de história oral do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Os documentos estão disponíveis para consulta e leitura na Base Arch. https://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/fiocruz-brasil-e-insa-portugal-desafios-da-comunicacao-publica-na-pandemia-de-covid-19.
8Em 11 de março de 2021, ao final da gestão de Pazuello à frente da pasta da Saúde e um ano após o início oficial da pandemia, o Brasil registrou aproximadamente 70 mil novos casos de COVID-19 por dia. Fonte: Our World in Data [2020]. Disponível em https://ourworldindata.org/coronavirus/country/brazil.
9Fonte: UOL. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2022/12/brasil-registra-37-mortes-e-105-mil-casos-de-covid-19-em-24-horas.shtml.
10Portal Fiocruz. “A trajetória do médico dedicado à ciência”. Disponível em https://portal.fiocruz.br/trajetoria-do-medico-dedicado-ciencia. Acesso em 07/08/2022.
11A missão da Fiocruz é “produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias voltados para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e que contribuam para a promoção da saúde e da qualidade de vida da população brasileira, para a redução das desigualdades sociais e para a dinâmica nacional de inovação”. Disponível em https://portal.fiocruz.br/perfil-institucional. Acesso em 09/03/2023.
12Disponível em https://portal.fiocruz.br/Covid19.
13Disponível em https://portal.fiocruz.br/noticia/confira-todas-edicoes-do-radar-covid-favelas.
14O Canal Saúde é a emissora de tevê aberta da Fundação Oswaldo Cruz. Para saber mais ver http://www.canalsaude.fiocruz.br.
15O Congresso Interno é o órgão máximo de representação da comunidade da Fiocruz, ao qual compete deliberar sobre assuntos estratégicos relacionados ao macroprojeto institucional. A primeira edição do Congresso Interno ocorreu em 1988. Disponível em https://congressointerno.fiocruz.br/o-que-%C3%A9.
16Instância da gestão da Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC) composta por representantes das diversas unidades técnico-científicas e escritórios da Fiocruz.
17A Agência Fiocruz de Notícias é gerenciada pela Coordenadoria de Comunicação Social da presidência da Fundação (CCS). A página web da AFN, operada pela CCS, publica notícias, entrevistas, reportagens especiais, artigos de opinião e vídeo-reportagens produzidos por equipe própria e por assessores de comunicação das diversas unidades da Fundação.
18São elas: Ações de monitoramento e vigilância; Kits, controle de qualidade e diagnóstico; Pesquisa e ensino; Parcerias, ações colaborativas, institucionais e eventos; Populações vulneráveis e povos indígenas; Tecnologia, comunicação, materiais e revistas; Centro hospitalar e ensaios clínicos; Cooperação internacional; Atenção básica e SUS; Saúde mental.
19Na pandemia, pesquisadores e cientistas foram instados a falar diretamente com o público no lugar das fontes tradicionais autorizadas, como presidente e diretores, sendo a médica pneumologista e pesquisadora Margareth Dalcolmo um bom exemplo. Tais especialistas, no entanto, não foram incluídos no escopo deste trabalho. Reconhecemos a importância desses atores no episódio de enfrentamento da COVID-19, o que poderá ser objeto de posterior projeto de pesquisa.
20Disponível em https://portal.fiocruz.br/observatorio-covid-19.
21Entradas [2022] verificou que, quanto maior a confiança em fontes científicas, maior a percepção de risco (ou seja, risco percebido amplificado); já quanto maior a confiança nas mídias sociais, menor a percepção de risco pessoal e social.