1 Introdução

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, é a mais destacada instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina. Tem como missão promover a saúde e o desenvolvimento social por meio do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS); gerar e difundir conhecimento científico e tecnológico, sendo um agente da cidadania. No campo da Comunicação e Informação, a Fiocruz edita revistas científicas e jornalísticas; produz e distribui livros acadêmicos e audiovisuais sobre ciência e saúde; é responsável por programação de televisão; desenvolve e mantém intensa atividade em plataformas web, incluindo mídias sociais; preserva e disponibiliza imagens históricas e atuais, bem como mantém extensa rede de assessorias de comunicação institucional e de relacionamento com o cidadão. Essas iniciativas, em grande parte de acesso aberto, ilustram o quanto a comunicação se firmou como área finalística e estratégica da Fiocruz, além de componente fundamental no compromisso institucional com o SUS.

Em 2017, foi criado o Fórum de divulgação científica, cujo objetivo é criar sinergia e promover a integração entre as diferentes ações e projetos desenvolvidos na Fiocruz sobre esta área. Em 2021, a Fiocruz publicou sua Política de divulgação científica, entendendo-a como um campo de conhecimento e estratégia de ação a fim de facilitar o diálogo científico e social. Na contemporaneidade, diante da emergência da pandemia de covid-19, que evidenciou questões comunicacionais concernentes às fake news e aos movimentos mundiais antivacina, a divulgação científica se coloca no epicentro do debate que envolve a ciência e sociedade.

Nesse contexto, 2021, inscrito no eixo Comunicação Pública da Ciência e da Saúde, o projeto ‘Artigos e autores na mídia e nas redes sociais: para uma divulgação científica inovadora e acessível da Reciis’ é contemplado pelo Programa de Indução à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico (PIPDT/Inova Icict),1 o que viabilizou, além da pesquisa, novas práticas comunicacionais da Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde (Reciis) nas redes sociais e plataformas digitais. A Reciis é editada desde 2007 pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict). Trata-se de um periódico interdisciplinar trimestral, revisado por pares e sem ônus para o autor. Publica textos inéditos de interesse para as áreas de comunicação, informação e saúde, em português, inglês, espanhol ou francês. No âmbito do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), a Reciis é o centro da produção e publicação de estudos na interface da Comunicação, Informação e Saúde, tanto na própria Fundação quanto no Brasil.

Diante do exposto, apresentaremos neste trabalho alguns conteúdos midiáticos voltados à divulgação científica da revista, fruto de resultados de pesquisas e estratégias que se consolidaram também devido ao contexto pandêmico. Propomos como caminho teórico-metodológico na análise desses conteúdos o entendimento de uma divulgação científica que não se restringe à ideia de tradução ou simplificação discursiva com o objetivo de transmitir o conhecimento científico para um público sem conhecimento, nem como um gênero discursivo próprio. Na análise dos conteúdos, partimos do pressuposto de que a divulgação científica é uma forma de conhecimento produzido a partir da interpretação de uma cultura científica imersa nos processos socioculturais e históricos, como defendem Lima e Giordan [2021] e de acordo com a Política de divulgação científica da Fiocruz que a compreende como um processo histórico que expressa valores e interesses econômicos, políticos e socioculturais de uma época [Fundação Oswaldo Cruz, 2021].

O trabalho está divido em três momentos. No primeiro, apresentamos a história da Fiocruz com a comunicação pública da ciência, sobretudo na emergência da internet e das redes sociais online; no segundo, alguns pressupostos teóricos que nos guiam na compreensão da divulgação científica; e no terceiro, análise de algumas práticas midiáticas de divulgação científica do periódico Reciis, imersas na epistemologia contemporânea que atravessa os campos da Comunicação, Informação e Saúde e materializadas como seu efeito discursivo.2

2 Contexto

O campo da comunicação na Fiocruz vem sendo constituído por diferentes processos e atores desde a sua origem. Já no início do século XX, sob liderança de Oswaldo Cruz, a instituição foi uma das pioneiras na criação de revistas científicas e também uma das precursoras na utilização das técnicas da fotografia, do desenho e da cinematografia para o registro e a divulgação da ciência. Iniciativas que se fortaleceram, multiplicaram e diversificaram ao longo do tempo.

Em 2002, foi implantado o Programa Integrado de Informação e Comunicação, produzido coletivamente pelos integrantes da Câmara Técnica de Informação, Informática e Comunicação. Aprovado pelo Conselho Deliberativo e pelo IV Congresso Interno, e incorporado ao Plano Quadrienal 2001–2005, o Livro Verde, como ficou conhecido, defendia a informação e a comunicação como estruturantes de atividades institucionais, produção de conhecimento e geração de novos processos e produtos, e apontava para o exercício da cidadania e do controle social, elencando prioridades e diretrizes para os dois campos nas articulações interna e externa da Fiocruz. Propunha como desafio o diálogo entre conhecimento científico e saber popular, e orientava sobre o direito à comunicação [Fundação Oswaldo Cruz, 2017].

Nesse sentido, compreendemos o periódico científico Reciis como um processo e um produto que se compromete com a comunicação científica e com o diálogo com a sociedade. Os princípios que guiam a Reciis vão ao encontro da política de comunicação e de divulgação científica e popularização da Fiocruz, entre os quais estão: a) acessibilidade comunicacional, que se refere à eliminação de barreiras, seja na comunicação interpessoal, escrita, audiovisual e digital, garantindo o direito ao acesso à comunicação e informação a qualquer pessoa em diferentes meios; b) acesso aberto, que corresponde à livre disponibilidade de conteúdo digital de caráter científico para a sociedade, sem restrição de acesso e de modo gratuito; c) divulgação científica, que se refere às ações dedicadas a tornar o conhecimento científico mais acessível ao público amplo, para além das estratégias formais de educação, utilizando-se plataformas, formatos e mídias diversas. Seu objetivo é fortalecer os laços entre a ciência e o cidadão, por meio da informação e do engajamento do público no debate político da ciência e das questões científicas.

A internet, além de proporcionar diversas possibilidades de gerenciamento de uma revista, também viabiliza o acesso livre à informação científica e arquivos abertos. As formas de divulgação da ciência também se ampliam, sendo os meios eletrônicos em sites ou mídias sociais de jornais, instituições científicas e periódicos canais para a divulgação científica, entendida como a publicização de conteúdo científico de maneira mais acessível para um público especializado e não especializado [Fundação Oswaldo Cruz, 2021].

As tecnologias de informação e comunicação digital possibilitam também que as pessoas não sejam apenas receptoras, mas também produtoras e ativas na interação com a publicação no meio digital [Recuero, 2009]. Nesse sentido, as redes sociais online funcionam como uma ferramenta da contemporaneidade correspondente ao princípio de popularização da ciência, pois incorpora um conceito de comunicação não restrito à transmissão de informação e conhecimento, mas se amplia a partir dos sentidos de interação e compartilhamento do saber. Entende-se que um periódico científico que se apropria das redes sociais como forma de divulgação da ciência deve se orientar pela lógica que guia tais tecnologias: a interação e o compartilhamento das informações.

Desde 2015, a Reciis gerencia uma página na rede social Facebook3 com o objetivo de compartilhar e estimular a interação das informações científicas publicadas em suas edições. A rede oferece muitos modos diversos de conteúdo para uma divulgação científica, desde publicações de textos, fotos e vídeos até pesquisas de pessoas, grupos, páginas, aplicativos, links e eventos por meio de buscas de palavras-chave e/ou uso de cerquilhas (#), o qual além de facilitar as buscas deixa mais objetiva a mensagem das publicações, sinalizando os temas de interesse do conteúdo. O financiamento do Programa (PIPDT/Inova Icict) possibilitou a ampliação dos perfis da revista no Instagram e em plataformas digitais. Analisaremos alguns conteúdos dessas plataformas adiante, mas antes iremos discutir a compreensão de Ciência e de Divulgação Científica que fundamentam as práticas comunicacionais do periódico.

3 Caminho teórico-metodológico

As ciências e os seus processos não estão isolados das dinâmicas políticas, sociais e históricas, nem acima delas de modo a influenciá-las e transformá-las. Conforme propõe Morin [2002], o movimento que se estabelece é de inter-retroações de ciência, sociedade, técnica e política: “a técnica produzida pelas ciências transforma a sociedade, mas também, retroativamente, a sociedade tecnologizada transforma a própria ciência” [Morin, 2002, p. 20]. Nesse sentido, é preciso considerar também que o cientista está inserido numa cultura, numa sociedade e na história; não está separado de seus objetos e seus métodos racionais. Os sujeitos e objetos das ciências se inter-relacionam e ambos estão imersos nas reflexões sobre a filosofia e sobre a moral do fazer científico, por isso é necessário que “toda a ciência se interrogue acerca de suas estruturas ideológicas e seu enraizamento sociocultural” [Morin, 2002, p. 25].

Essa perspectiva de ciência dialoga, em termos de educação científica, com a perspectiva sociocultural de Pedretti e Nazir [2011]. Discutida por Coutinho, Matos e Silva [2014], essa visão compreende que a Ciência e a Tecnologia são instituições sociais interconectadas com a política, economia e cultura, sendo também a Ciência entendida como mais uma forma de conhecer dentre outras. Na Política de divulgação científica da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz, 2021], a abordagem sociocultural também é considerada. A instituição entende a divulgação científica como uma forma de conhecer inserida em processos históricos que expressam valores, interesses econômicos, políticos e socioculturais de uma época.

Desta maneira, é pertinente pensar as práticas de divulgação científica numa dinâmica de mediação cultural, indo além do ‘modelo de déficit’ da Comunicação Pública da Ciência, que, exemplificado por Castelfranchi [2008], o jornalismo científico — aqui entendemos a divulgação científica como um todo — não é formado apenas por profissionais que têm a função de simplificar e transmitir o conhecimento científico para um público que não sabe e não entende nada de ciência. Para o autor, o ‘modelo de déficit’ evidencia um entendimento de que: a) a ciência é pensada como autônoma e impermeável em relação às instituições sociais; b) o público é visto como uma massa homogênea e passiva, formada por pessoas com déficits cognitivos e informativos e c) a comunicação se dá de forma linear e unidirecional. A prática comunicacional ‘divulgar a ciência para um público leigo’, segundo o autor, é uma operação de simplificação que, “no caminho entre a ciência e a cabeça das pessoas, muita informação é sacrificada ou perdida, por causa da banalização operada pelo comunicador ou por uma parcial incompreensão devido às falhas culturais do receptor” [Castelfranchi, 2008, p. 10].

A partir disso, é preciso considerar a Comunicação Pública da Ciência na perspectiva da comunicação dialógica, uma proposta de Araújo e Cardoso [2007] no âmbito da Comunicação e Saúde a partir da abordagem de Paulo Freire, campos em que as práticas aqui discutidas se articulam. Nessa perspectiva, tanto emissor quanto receptor são detentores de saberes, e suas práticas de linguagem popular/científica estão num espaço de comunicação no qual se estabelecem lutas e negociações na construção de sentidos dinâmicos, que se alteram em contextos sociais, gêneros de linguagem e plataformas de mídias.

Nesse sentido, nosso caminho teórico-metodológico parte da compreensão de que a prática e o conhecimento comunicacional produzido por meio dela é indissociável da sensibilidade e interação cotidiana que se dão a partir das injunções culturais e históricas da sociedade, perspectiva defendida por Sodré [2014]. Para o autor, a reflexão sobre o comunicacional não se restringe ao pensamento conceitual, dedutivo e sequencial, sem que se tenha conseguido elaborar uma “práxis (conceito e prática)” [Sodré, 2014, p. 178]. Nesse sentido, nossa prática cotidiana da comunicação e divulgação científica é entendida como prática de relação entre sujeitos que partilham o comum (comunicacional) nas contingências históricas e sociais. Dessa forma, o saber-fazer da comunicação e da divulgação científica não se restringe apenas à tradução/simplificação da linguagem — neste caso, a linguagem científica — nem somente à análise discursiva da linguagem das e nas mídias, mas também ao estudo do processo de construção da narrativa e conteúdos comunicacionais, de sua interação e partilha, na qual emerge o efeito discursivo [Foucault, 1997] e [Hall, 2016] dos conteúdos de divulgação científica, neste caso, da Reciis.

4 Discussões e resultados

Em 2020, quando instituições de saúde e governos decretaram o distanciamento social no intuito de conter a transmissibilidade do vírus da covid-19, a divulgação científica do periódico passou por novos processos de criação dos produtos audiovisuais, que ocorriam com deslocamentos de profissional para entrevistas e gravações presenciais.4 Diante do aumento de eventos científicos remotos, aulas no modelo remoto e o uso frequente com familiaridade dos professores e pesquisadores na comunicação em tela pelas plataformas de reunião online via computador e celulares, investiu-se em convidar as autoras e os autores a enviar vídeos-resumo gravados pelos celulares ou por computador com algumas orientações básicas de filmagem. Nessa dinâmica, obtivemos uma relevante aceitação de autoras e autores em contribuir na produção do conteúdo. Entende-se que essa receptividade se deve ao contexto de distanciamento social em razão da pandemia de covid-19, que gerou a necessidade da comunicação dos professores e pesquisadores por meio das mídias e tecnologias digitais; e também por muito deles serem da área da Comunicação e já terem alguma experiência em se comunicar pelas plataformas comunicacionais.

A materialidade discursiva dos vídeos-resumo das autoras e autores produz o efeito de humanidade e a comunicação com um público mais diversificado — além dos pares, dos cientistas. Os vídeos-resumo concretizam também o que Morin [2002] defende sobre o observador nas ciências: “o progresso do conhecimento científico exige que o observador se inclua em sua observação” [Morin, 2002, p. 29]. Na perspectiva das contingências históricas, culturais e sociais, testemunhar o artigo publicado se configura como um relato mais autêntico em relação à verdade do que aquela que se revela apenas pela razão da observação do processo científico, que Sarlo [2007] denomina como uma guinada subjetiva vivenciada na contemporaneidade. É pertinente observar a emergência da subjetividade nos vídeos-resumo voltados à divulgação e nos próprios estudos científicos publicados no periódico.

Percebemos também um deslocamento do papel do divulgador científico marcado pelo paradigma do ‘modelo de déficit’, deixando de ser aquele que tem a função de traduzir e simplificar o conhecimento científico para um público leigo e passando a ser uma parte da mediação da ciência e a sociedade: “um sujeito que toma como referente a cultura científica e promove o diálogo com outras esferas da atividade humana” [Lima & Giordan, 2021, p. 389]. Para os autores, a consideração do divulgador científico como um dos atores da cultura científica é essencial para compreendê-la de forma mais ampla, na sua contingência sociocultural, e na atuação mais abrangente nos processos comunicativos da Ciência e da Tecnologia.

Além disso, o efeito discursivo dos vídeos-resumo situa o lugar de fala do conhecimento, evidenciando que a ciência não produz a verdade universal e que ela é construída por corpos e vozes de sujeitos marcados, sobretudo pela classe, raça e gênero, por saberes localizados [Haraway, 1995]. Nesse sentido, os efeitos sociais/científicos desses conteúdos de divulgação da ciência se articulam com o espaço-tempo de uma ciência que promove epistemologias pensadas pela multiplicidade de vozes e saberes situados, a fim de refletir sobre “um discurso autorizado e único, que se pretende universal” [Ribeiro, 2019, p. 70]. Ao longo do tempo, os formatos dos vídeos-resumo foram evoluindo, como mostra a (Figura 1).

PIC

Figura 1: Evolução dos formatos de vídeo-resumos. Fonte: perfil do Facebook e Instagram da Reciis.

Na procura por tornar os conteúdos mais acessíveis, atendendo ao princípio de acessibilidade comunicacional do periódico e da recomendação do edital aos projetos financiados pelo PIPDT/Inova Icict, os quais deveriam considerar a Política da Fiocruz para Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência [Fundação Oswaldo Cruz, 2019], passa-se a incorporar nas solicitações dos vídeos-resumo a autoras e autores a autodescrição e, na edição do vídeo, a inclusão da tradução em Libras nos conteúdos com base em orientações de normas [Associação Brasileira de Normas Técnicas, 2016] e guias [Naves, Mauch, Alves & Araújo, 2016].

Importante considerar que a inclusão e a conformação da tradução em Libras nas plataformas das redes sociais do periódico está em processo, de maneira a atender o mais próximo possível às normas. É preciso pontuar que a inclusão da tradução em Libras não torna o conteúdo idealmente acessível, conforme consideram pesquisadores deste campo. Além disso, entendemos essa ação de tornar o conteúdo mais acessível não apenas como reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência na garantia do acesso aos conteúdos de divulgação científica, mas também como o “reconhecimento desses cidadãos como sujeitos de direitos e pela produção de informações com abordagem não discriminatória” [Silva, 2020, p. 19]. Nesse sentido, é preciso considerar a mesma ideia do ‘modelo de déficit’ que mobilizamos anteriormente de forma geral para o público leigo; e aqui, na especificidade com as pessoas surdas, se configura como uma postura não estigmatizada na qual geralmente se compreende pessoas surdas como pessoas que precisam ser tuteladas, superestimadas, especiais e/ou excepcionais na produção de conteúdos comunicacionais, como ressalta Silva [2020].

Ainda nesse viés, queremos chamar a atenção do efeito discursivo do recurso de acessibilidade da autodescrição — em que autoras e autores fazem uma descrição de suas características físicas: “sou um homem negro, cabelo curto, cavanhaque, uso óculos e estou com uma camisa xadrez” (Figura 1 e Figura 2). Entendemos que o recurso se insere também num regime discursivo de reconhecimento e de afirmação dos lugares das vozes dos sujeitos produtores do conhecimento publicado na Reciis, conforme temos discutido.

PIC

Figura 2: Autodescrição e tradução para o inglês e libras de um vídeo-editorial. Fonte: canal do Youtube da VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.

Por meio do projeto, a divulgação científica da Reciis adotou uma prática de integrar os canais do Instagram5 e do Spotify,6 com a edição e adequação da linguagem das lives7 realizadas no Instagram para podcast. Segundo Castelfranchi [2010], comunicar a ciência não é apenas uma escolha, opção dos cientistas, um dever de alguns ou um direito de outros, mas também uma parte fisiológica, intrínseca e inevitável do funcionamento da tecnociência. Nesse sentido, explorar o potencial interativo de canais como o Instagram e, no caso específico da Reciis, o Spotify, é uma maneira de corresponder a fisiologia e funcionamento da tecnociência e tecnologias midiáticas marcadas pela convergência de conteúdos em diversas plataformas e formatos, a fim de potencializar a circulação e ampliar o engajamento da audiência. Trata-se de um “potencial de reimaginar e revitalizar o jornalismo de ciência em um mundo digital” [Hermida, 2010, p. 86, tradução nossa].

A teoria Ator-Rede, defendida sobretudo por Bruno Latour, compreende que o conhecimento se dá na esfera social a partir de interações tanto de ‘objetos’ quanto de sujeitos por uma rede heterogênea. Fazemos a apropriação dessa teoria, pois ela nos ajuda a compreender que a existência das autoras e autores pressupõe a rede: “o ator só é ator porque ele adquire forma, significado e identidade na rede” [Oliveira & Porto, 2016, p. 60]. Entendemos que essa dimensão dos autores ‘como’ rede e ‘na’ rede se materializa em práticas comunicacionais da revista nas dinâmicas de interatividade com as autoras e autores nas lives do Instagram e na sua convergência em bate-papo no formato de podcast. Compreendemos que, ao conversar sobre o estudo publicado no periódico, o autor e o seu objeto (o assunto e o texto científico) se colocam em fluxos de mediação e translação — girando em torno de si e de sua pesquisa em novas leituras que se dão a partir da interação propiciada pelo bate-papo. Essa concepção foi pensada e simbolizada no nome do programa de podcast: Revozes, publicado pela primeira vez em 9 de fevereiro de 2022. A imagem (Figura 3) sugere a ideia de círculo, espiral de evolução, autofecundação, em consonância com a ideia de releituras (Figura 3).8

PIC

Figura 3: Logo do Revozes, arte produzida por Luciana Rocha — Multimeios (Icict/Fiocruz). Fonte: podcast Revozes.

No âmbito das ciências humanas, as considerações de Amorim [2004] sobre o texto científico tornam-se pertinentes e consonantes com a nossa discussão. Para a autora, a narrativa das pesquisas tem uma forma híbrida na qual coabitam o eu da experiência singular na situação de campo e o nós da teoria universalizante. A partir do pensamento e conceitos de Mikhail Bakhtin, como polifonia e dialogismo, Amorim [2004] argumenta que o texto científico, em sua polifonia, presentifica vozes e convoca outras, sendo ele não apenas a representação, mas em si próprio a alteridade. Com isso, queremos chamar a atenção que, nas práticas comunicacionais de divulgação a partir da interação com autoras e autores da Reciis, há uma nova construção textual, (re)leituras e convocações dialógicas com outras vozes que não somente as de autoras e autores, como é o caso aqui com a mediação de outro profissional (Figura 4), pois como defendemos anteriormente: o autor é rede.

PIC

Figura 4: Mediação de Clara Marques em lives com as autoras Ivonete Lopes e Luma Nogueira. Fonte: perfil do Instagram da Reciis: @reciis_fiocruz.

Na perspectiva das linguagens, como exemplificação, o bate-papo com a autora Ivonete Lopes [Lopes & Marques, 2022] e Luma Nogueira [Nogueira & Marques, 2022] materializa o que estamos discutindo. Suas falas, em interação (diálogo) com a mediadora sobre a pesquisa publicada, produzem outro texto que evoca, nas suas palavras, outras vozes: das mulheres negras ou travestis, nesses casos. Nessa mesma esteira, está a comunicação dialógica enfatizada nos estudos de Araújo e Cardoso [2007], na interface com o campo da saúde: “em cada fala, enunciado ou texto, exprime-se uma multiplicidade de vozes, a maioria delas sem que o locutor se aperceba” [Araújo & Cardoso, 2007, p. 56]. Importante considerar que pensar nessa perspectiva dialógica amplia a proposta de ‘lugar de fala’. Muniz Sodré afirma que não há lugares de fala exclusivos, “porque a característica do próprio lugar deve ser móvel, essa é a mobilidade criativa, a mobilidade de lugar” [Sodré, 2019, p. 882]. Essa mobilidade é evidenciada na voz da professora Luma Nogueira, deslocando-mobilizando do lugar restrito e estereotipado às pessoas travestis com sua presença (corpo e voz) no espaço da Ciência.

5 Considerações finais

Esse estudo é resultado de um processo saber-fazer sobre as práticas comunicacionais dos conteúdos de divulgação científica do periódico Reciis por meio do projeto financiado ‘Artigos e autores na mídia e nas redes sociais: para uma divulgação científica inovadora e acessível da Reciis’. Consideramos que a emergência midiática das autoras e autores do periódico produz efeitos discursivos que enunciam e evidenciam o observador da observação: o cientista inserido numa cultura — científica — e numa rede discursiva em sua contingência sociocultural.

O contexto pandêmico e a decorrência da medida de distanciamento social, promovendo o estímulo à participação dos pesquisadores nas mídias, se apresentou como uma possibilidade inovadora nos modos de divulgar e popularizar a ciência nas mídias sociais. No caso do periódico Reciis, consideramos que houve um envolvimento significativo das autoras e autores nas propostas aqui discutidas, o que nos faz compreender o processo como possibilidade de mais um espaço entre os lugares tradicionais da sala de aula e eventos científicos em que a maioria das autoras e autores estão acostumados — atentos nos modos enunciativos dos ambientes das redes e plataformas de mídia. Dessa maneira, pesquisadores e pesquisadoras passam a se comunicar também com outros públicos.

Os conteúdos materializam uma guinada subjetiva na Ciência em que o corpo e o testemunho da experiência da pesquisa produzem efeitos autênticos de uma verdade que mobiliza e questiona a Verdade Universal a favor de saberes localizados, nos modos de dizer e estar; até mesmo na inclusão de tecnologias assistivas como autodescrição e tradução em Libras. Apesar de não termos um estudo sistematizado, consideramos a inclusão dessas tecnologias de acessibilidade como uma inovação nos processos de divulgação científica por meio de periódicos científicos, ampliando o princípio de acessibilidade comunicacional e garantindo o direito à comunicação e acesso à ciência das pessoas surdas. Destacamos também como processo inovador a estratégia de convergência do conteúdo das lives do Instagram em episódios de podcast em ações de divulgação de uma revista científica.

As práticas comunicacionais e sua materialização em conteúdos midiáticos do periódico que traz o cientista na comunicação com o público reconfiguram o paradigma de que o divulgador científico teria a função de traduzir e simplificar o conhecimento científico para um público leigo. Consideramos que ele está imerso na cultura e é um dos autores nos processos de mediação da cultura científica por meio das tecnologias e discursos jornalísticos, educacionais e/ou por outras ferramentas culturais. Quanto ao desenvolvimento do conhecimento científico, Morin [2002] ressalta que os antigos problemas e sua renovação são mediados pela comunicação entre a cultura científica, cultura humanista (filosofia) e com a cultura dos cidadãos, na qual as relações midiáticas têm relevante participação.

Agradecimentos

Agradecimento à coordenação e equipe do Programa de Indução à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico — PIPDT-Inova Icict.

Referências

Amorim, M. (2004). O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo, Brasil: Musa Editora.

Araújo, I. S. & Cardoso, J. M. (2007). Comunicação e saúde. Rio de Janeiro, Brasil: Editora Fiocruz.

Associação Brasileira de Normas Técnicas (2016). NBR15290 de 12/2016: Acessibilidade em comunicação na televisão. ABNT. Rio de Janeiro, Brasil.

Castelfranchi, Y. (2008). Para além da tradução: o jornalismo científico crítico na teoria e na prática. Em L. Massarani & C. Polino (Ed.), Los desafíos y la evaluación del periodismo científico en Iberoamérica: jornadas iberoamericanas sobre la ciencia en los medios masivos (pp. 10–20). Santa Cruz de la Sierra, Bolívia: AECI, RYCYT, CYTED, SciDevNet, OEA.

Castelfranchi, Y. (2010). Por que comunicar temas de ciência e tecnologia ao público? (Muitas respostas óbvias… mais uma necessária). Em L. Massarani (Ed.), Jornalismo e ciência: uma perspectiva ibero-americana (pp. 13–21). Rio de Janeiro, Brasil: Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Coutinho, F. Â., Matos, S. Á. & Silva, F. A. R. (2014). Aporias dentro do movimento ciência, tecnologia, sociedade e ambiente. Apontamentos para uma solução. Revista de Ensino de Biologia da Associação Brasileira de Ensino de Biologia 7, 2176–2185. Recuperado de http://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/8448

Foucault, M. (1997). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Brasil: Forense Universitária.

Fundação Oswaldo Cruz (2017). Política de comunicação da Fiocruz. Fiocruz. Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/41668/2/politica_de_comunicacao_da_fiocruz.pdf

Fundação Oswaldo Cruz (2019). Política da Fiocruz para acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência. Fiocruz. Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-lanca-politica-institucional-de-acessibilidade-e-inclusao

Fundação Oswaldo Cruz (2021). Política de divulgação científica. Fiocruz. Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de https://portal.fiocruz.br/documento/politica-de-divulgacao-cientifica-da-fundacao-oswaldo-cruz

Hall, S. (2016). A identidade cultural na pós-modernidade (11ª ed.). Rio de Janeiro, Brasil: DP&A.

Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu 5, 7–41. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773

Hermida, A. (2010). Revitalizing science journalism for a digital age. Em D. Kennedy & G. Overholser (Ed.), Science and the media (pp. 80–87). Cambridge, MA, U.S.A.: American Academy of Arts e Sciences. Recuperado de https://www.amacad.org/publication/science-and-media/section/10

Lima, G. S. & Giordan, M. (2021). Da reformulação discursiva a uma práxis da cultura científica: reflexões sobre a divulgação científica. História, Ciências, Saúde — Manguinhos 28 (2), 375–392. doi:10.1590/s0104-59702021000200003

Lopes, I. & Marques, C. (2022, maio 7). Mulheres negras e quilombolas: comunicação e informação da covid-19 [Episódio de podcast em audio]. Revozes, Reciis. Recuperado de https://open.spotify.com/episode/64wB6U9kg168RsOmW91eVa?si=II5ZaeTyQhqapBub5zHsjw&utm_source=native-share-menu&nd=1

Morin, E. (2002). Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Brasil: Bertrand Brasil.

Naves, S. B., Mauch, C., Alves, S. F. & Araújo, V. L. S. (Ed.) (2016). Guia para produções audiovisuais acessíveis. Brasília, Brasil: Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

Nogueira, L. & Marques, C. (2022, junho 21). Travestis e transexuais nas ciências [Episódio de podcast em audio]. Revozes, Reciis. Recuperado de https://open.spotify.com/episode/7aR5XDdrWrEqxBVmaU46OC?si=34bcd541d5d94c22&nd=1

Oliveira, K. E. J. & Porto, C. M. (2016). Educação e Teoria Ator-Rede: fluxos heterogêneos e conexões híbridas. Florianópolis, Brasil: Editus.

Pedretti, E. & Nazir, J. (2011). Currents in STSE education: mapping a complex field, 40 years on. Science Education 95 (4), 601–626. doi:10.1002/sce.20435

Recuero, R. (2009). Redes sociais na Internet. Porto Alegre, Brasil: Editora Sulina.

Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. São Paulo, Brasil: Sueli Carneiro, Pólen Editora.

Sarlo, B. (2007). Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Brasil: Companhia das Letras.

Silva, M. M. R. G. (2020). Orientações gerais sobre acessibilidade e inclusão para profissionais de comunicação. Fiocruz/ICICT. Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/43374

Sodré, M. (2014). A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis, Brasil: Editora Vozes.

Sodré, M. (2019). Do lugar de fala ao corpo como lugar de diálogo: raça e etnicidades numa perspectiva comunicacional. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde 13 (4), 877–886. doi:10.29397/reciis.v13i4.1944

Autores

Roberto Abib. Jornalista do Ministério da Saúde/Fiocruz. Doutorando e mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Foi coordenador do projeto de Comunicação Pública da Ciência e da Saúde ‘Artigos e autores na mídia e nas redes sociais: para uma divulgação científica inovadora e acessível da Reciis’ (2021–2022).
E-mail: roberto.abib@icict.fiocruz.br

Clara Marques de Sousa. Jornalista, mestranda em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); pós-graduada na Especialização em Divulgação e Popularização da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC — Fiocruz). Foi bolsista do projeto ‘Artigos e autores na mídia e nas redes sociais: para uma divulgação científica inovadora e acessível da Reciis’ (2021–2022).
E-mail: claracac13@gmail.com

Notas

1O programa tem como um dos objetivos, no âmbito do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde,desenvolver estratégias e executar ações de informação e comunicação no campo da ciência, tecnologia e inovação em saúde, objetivando atender às demandas sociais do Sistema Único de Saúde (SUS). A proposta tem o objetivo de fortalecer as iniciativas de divulgação e popularização da ciência por meio do periódico Reciis, de modo a ampliar e tornar acessível o alcance da informação científica no Brasil e no exterior, sendo também uma ferramenta que estimule a articulação institucional para a formulação de políticas e o desenvolvimento conjunto de ações de divulgação científica dos periódicos da Fiocruz de maneira geral, visando a otimização de recursos e compartilhamento de materiais produzidos.

2Trata-se de uma abordagem discursiva na perspectiva foucaultiana — considerando que o discurso é produtor dos objetos de nosso conhecimento, governando assuntos e maneiras de como eles serão falados e debatidos, influenciando as ideias postas em práticas e sugerindo comportamentos e valores morais dos sujeitos de seu tempo [Foucault, 1997]. Na argumentação sobre a abordagem discursiva de Foucault, Hall disserta que em cada período histórico, “o discurso produz formas de conhecimento, objetos, sujeitos e práticas de conhecimento que são radicalmente diferentes de uma época para outra” [Hall, 2016, p. 84].

3Conferir em: https://www.facebook.com/ReciisIcictFiocruz.

4Com o distanciamento social em decorrência da pandemia de covid-19, a divulgação em texto e com bancos de imagens não teve alterações nos seus processos.

5Conferir em: https://www.instagram.com/reciis_fiocruz/.

6Conferir em: https://open.spotify.com/show/5EwKNBaCnJioc8vJj64sEo?si=a70a4d6b694a4263.

7As lives realizadas no perfil do Instagram têm uma duração média de 50 minutos e buscam aproximar as autoras e os autores que publicam artigos e notas de conjuntura na revista do público acadêmico, ou para quem deseja conhecer os debates que ocorrem nas universidades e ambientes de pesquisa.

8O Revozes está presente no Spotify, sendo redirecionado para esta rede por meio do aplicativo Anchor, disponibilizado pelo próprio agregador de streaming supracitado. Cada episódio do Revozes, com exceção do episódio de estreia, tem uma média de 40 minutos.